Hydlide — como uma linguagem em esquecimento

Hydlide — como uma linguagem em esquecimento

As vezes um jogo é dizimado criticamente por pura questão de circumstância. Quando Hydlide originalmente chegou ao Japão em dezembro de 1984 para o PC-88, que era um computador exclusivo do país, ele foi visto como uma grande revolução para jogos de RPG de ação. Ele esteve em desenvolvimento juntamente de Dragon Slayer da Nihon Falcom, que também foi um dos primeiros jogos a tentarem o estilo.

Mesmo assim, enquanto Dragon Slayer veio de um time mais adentrado na cultura de RPGs de computador em turno e RPGs de mesa, Hydlide foi dirigido por Tokihiro Naito, que possuía uma visão mais inocente do gênero. Em uma entrevista feita por John Szczepaniak para seu livro “The Untold History of Japanese Game Developers“, Naito alega que não teve contato nem com os RPGs de computador mais influentes da época, Ultima e Wizardry, o que é surpreendente considerando algumas das similaridades estéticas e estruturais entre Ultima e Hydlide. De qualquer forma, a maior inspiração de Hydlife foi o jogo arcade Tower of Druaga, que focava quase inteiramente em ação constante e soluções de puzzles extremamente complicadas e por vezes quase impossíveis de achar sem ajuda externa.

Hydlide game over
🙁 morreu

Isso tornou Hydlide um jogo mais autoral, quase uma obra de arte bruta. Quem é familiar com o jogo hoje em dia já sabe dessa discrepância, mas é importante reiterar: Hydlide vendeu bem e foi muito bem recebido no Japão, tanto que veio a inspirar alguns dos maiores nomes da indústria, como Hideo Kojima, o diretor da franquia Metal Gear, Hideki Kamiya, e jogos como The Legend of Zelda e Ys. Infelizmente, Hydlide ficou apenas disponível em japonês por cinco anos até ser trazido aos Estados Unidos em junho de 1989 com uma versão de Nintendinho que veio com suas próprias melhorias e limitações. O problema do público com o jogo veio de sua arcaicidade notada por jogadores americanos da época que já haviam botado suas mãos em jogos mais polidos como o já mencionado Zelda. Ou seja, ele não foi visto como um ponto histórico de inspiração, mas sim uma piada.

Este texto faz parte da Ode aos RPGs, um projeto em andamento do site! Os outros textos podem ser vistos aqui!

Hydlide busca inspiração nos aspectos comunitários de jogos como Tower of Druaga, que eram tão complicados que jogadores podiam anotar segredos e notas importantes em blocos de notas diretamente em seus gabinetes dos arcades da época. O jogo não foi feito para ser terminado sem nenhuma ajuda, mas sim com o esforço das descobertas de múltiplos jogadores que iam contribuindo seus conhecimentos pouco a pouco e os compartilhando entre si. Hydlide, mesmo sendo lançado para plataformas feitas para o uso doméstico, ainda seguia esta cultura. 

Tower Of Druaga (1984, Namco)
Tower Of Druaga (1984, Namco)

Para progredir em Hydlide, as vezes você precisa realizar ações notavelmente específicas e sem sentido lógico. O intuito era fazer os jogadores discutirem estratégias entre si para descobrir os segredos necessários! Era uma intenção nobre, mas infelizmente o jogo não conseguiu uma comunidade dedicada para si mesmo nos EUA para que brilhasse apropriadamente. Vários jogos que vieram após Hydlide ainda eram complicados e necessitavam de ajuda externa para serem terminados, mas o momento a momento deles era mais engajante e desenvolvido, ao menos olhando por um lado mais tradicional de game design.

Em Hydlide você controla apenas um cavalheiro, Jim, que busca resgatar a princesa do reino das fadas que foi magicamente separada entre três diferentes fadas pelo malvado demônio Varalys, que por sua vez ressurgiu devido à um ladrão que quebrou seu selo ao roubar três joias do reino. É um pouquinho cheia de coisas numeradas demais e desfocada, mas ainda é uma história bem padronizada para um RPG da época, seja de PC ou de mesa. O que torna Hydlide tão único e, de certa forma, inspirador está em sua estrutura bizarra. Logo de cara você é livre para explorar quase toda a dimensão de seu mapa 5×5, mas isso não significa que você *deve* explorar tudo sem seguir uma ordem definida. Pra começar, é difícil derrotar até os mais simples inimigos, como os slimes e kobolds.

O jogo espera que você tome um tempo para se acostumar com seu combate e suba de nível enquanto mata estes inimigos básicos. Não existe um botão próprio para ataque; só de esbarrar em um inimigo você já dá dano nele. Mas, segurando o botão A, você troca do modo padrão defensivo para um ofensivo que te faz tanto dar mais dano quanto receber mais dano. A estratégia recomendada para quase todo tipo de inimigo é avançar enquanto ele está de costas para Jim, o que te permite usar o modo de ataque sem que o inimigo consiga reagir e te atacar de volta. Mas assim, é mais fácil falar isso do que por em prática. Os inimigos atacam de maneira errática e alguns nem tem indicadores visuais de qual direção estão olhando, como é o caso dos wisps encontrados em uma das cavernas.

Assim, o combate de Hydlide faz mais sentido como uma batalha de fricção, e não algo para ser casualmente dominado por maestria tradicional. Sua melhor opção na maior parte do tempo é só caçar níveis por uns bons minutos antes de fazer qualquer outra coisa. Em jogos como o primeiro Ys, este também é o caso até certo ponto, mas lá os inimigos são mais consistentes e suas oportunidades de ataque são mais administráveis no momento a momento.

Hydlide dragão
Mais um dragão conquistado pelo Recanto do Dragão

Ok. E a estrutura? é maravilhosamente bizarra. Você é desprovido de qualquer informação consistente sobre o que cada item faz e onde achar qualquer coisa, principalmente devido à falta de cidades ou NPCs. Isso não é um problema nem nada, pois considerando o resto de Hydlide, só ia deixar as coisas mais complicadas e confusas (o que realmente acabou acontecendo nos segundo e terceiro jogos [mas não no remake Virtual Hydlide!]). Pegue uma cruz para dar dano em um vampiro que só pode ser confortávelmente morto ao ser atingido pelas costas; pegue a lâmpada que ele largou para explorar o resto das cavernas; pegue uma espada melhor que é basicamente obrigatória; por aí vai. Existe uma ordem quase indispensável para ser seguida, mas você não sabe disso sem um guia. Na visão de muitos jogadores, isso pode ser um problema imperdoável, mesmo considerando a idade do jogo. Mas, ao menos para mim, acho um peso retirado das costas ter a certeza de que um guia é necessário. Você não precisa se preocupar tanto em perder a “intenção original” de design se esse é o jeito mais consistente de experienciar o jogo hoje em dia.

Só pra esclarecer: Hydlide é consideravelmente mais obtuso que um Zelda da vida. Aquele arbusto aleatório que você deve queimar no primeiro Zelda é provavelmente uma referência ao arbusto aleatório que você deve queimar no meio de uma boss fight em Hydlide! A luta contra o feiticeiro também é outro ponto dificílimo sem um guia. A única maneira de matá-lo no Nintendinho (nas outras versões não existe magia, então o método é diferente) é utilizando especificamente o feitiço Wave, que só pode ser conjurado em uma onda horizontal. Além disso, o espaço vertical da arena do feiticeiro é gigantesco enquanto o horizontal é minúsculo. Ah, e tem dois dele. E você deve matá-los num feitiço só, senão eles reaparecem indefinidamente. Claro, o jogo não te explica nadinha disso. Não consigo imaginar a dor dos jogadores que não tinham save states no console em espécie.

Usar save states em Hydlide não é uma medida desconectada do design original, inclusive. Só acelera o processo. Isso pois, para salvar no NES, você clica na opção “Save” do menu, que não salva o jogo mas cria uma senha do seu estado atual. Ao salvar você deve entrar no menu “Password” para anotar a senha (bem longa inclusive) que deve ser colocada quando você morrer e precisar voltar de onde parou. Você pode salvar com este método a qualquer momento, então tudo o que o save state faz é cortar o processo árduo de anotar e eventualmente digitar a senha quando morrer.

água drenada árvores assassinas
Nessa imagem não dá pra perceber, mas uma dessas árvores está viva e me caçando

No fundo, o que torna Hydlide especial é sua resistência aos hábitos do jogador. Mesmo para sua época, ele é particularmente cabeça dura. Ele nunca te permite entrar em sua zona de conforto, nem quando você explicitamente sabe o que fazer por ver um guia ou simplesmente por estar o rejogando. De certa forma, ler um guia para terminar Hydlide ou usar save states para pular a tediosa tarefa de anotar e digitar senhas também acaba prejudicando a batalha de atrito proposta pelo jogo. É uma experiência bem diferente do que jogadores japoneses tiveram quando jogaram Hydlide próximo ao seu lançamento. Mesmo assim, considerando a mudança de atitude dos fãs do meio de videogame com o passar dos anos (que foi refletida em massa pela grande indústria nos jogos), usar estes “atalhos” não é algo de todo ruim. É aquele sentimento de entender algo mesmo que você não tenha visto aquilo tudo de primeira mão. É certamente diferente da experiência original, mas muitas vezes é necessário para ao menos fazer alguns jogadores darem uma chance à jogos tão teimosos.

Eu não digo isso com desdém ao Hydlide, sua construção, intuito ou qualquer coisa do tipo. É mais uma admiração de sua posição como um jogo tão confiante. Até em comparação com suas inspirações, ele resiste o que julga como não necessário para sua própria visão de um RPG de ação.

Não quero que o passado dos jogos se perca tão rapidamente e vire algo só importante ao público que cresceu com eles. Hoje em dia, existem muitos fãs de carteirinha de gêneros inteiros que nunca tocaram nem em jogos dos anos 90. Como uma pessoa de 20 anos que certamente não cresceu com um Nintendinho ou internet discada, eu tive uma certa dificuldade para começar a explorar jogos de um passado mais distante, tanto pelas gritantes diferenças de abordagem esperadas do jogador por parte de jogos antigos quanto pela falta de uma visão mais aberta de estudo deles, o que tinha me levado a pensar que a barreira de entrada era grande demais para valer a pena.

E olha, realmente não é!!! Existem várias maneiras de abordar um jogo antigo complicado de configurar ou até mesmo jogar do começo ao fim. Se limitar a um pensamento “purista” baseado em padrões atuais não é tão útil quando o assunto é jogo antigo. Hoje em dia, com jogos pop (os maiores blockbusters e jogos independentes com distribuidoras renomadas), chegar aos créditos é algo esperado pelos designers, que buscam incentivar jogadores a ver tudo possível antes do fim sem tanta dor no interim. Isso não é de todo ruim, mas acaba limitando a visão de alguns jogadores modernos que acabam abordando jogos como Hydlide com expectativas similares.

Aqui vai o resto do que eu tenho a dizer: Aprecie as peculiaridades de jogos antigos! Não tenha medo de explorá-los no seu ritmo! Não tenha medo de usar um guia ou save states! Mas além disso tudo: Aproveite o limiar de diferenças que separam você do jogo!!

Hydlide fim congratulations!