Era uma vez, o pequeno Yanzinho. Ele e seu pai gostavam de filmes de ação com terror, de zumbis alucinados a vampiros doidões. De filme de lobisomem, de pessoas com óculos escuro dando pirueta e fuzilando tudo em câmera lenta, ao complemento de música eletrônica. Além da ação frenética e sanguinolenta, seu pai também gostava de jogos de terror (Resident Evil e Silent Hill se destacam, dentre outros). E assim, Yanzinho seguiu os passos do pai com seus metafóricos pézinhos de criança, acolhendo e nutrindo muitos dos mesmos gostos ao longo de sua vida.
Por conta desse histórico, Yanzinho naturalmente teve que enfrentar longas noites de pesadelos apocalípticos. Seus pais virando zumbis, ele sendo sequestrado e assassinado por vampiros, espíritos possuídos invadindo sua casa e quebrando seu pescoço no calar da noite mais gélida. Nada que mais exposição constante a esse tipo de mídia não curaria com o tempo, é normal. Mas, se tem UM medo que o Yan de hoje ainda não superou, é o medo do “desconhecido” (acreditem ou não, ele tem medo do escuro até hoje… faz parte, é a vida).
Enfim. Fazendo novas interfaces e aprofundando meu repertório cultural de terror pra além das mídias mais populares e meio bobas (Van Helsing [2004], Constantine [2005], estarão sempre em meu coração), acabei tropeçando numa rocha esquisita, um fragmento quasi-amórfico caído dos céus, dotado de uma matiz caleidoscópica fantástica e indescritível. Calafrios percorreram minha espinha enquanto minha frágil percepção humana se desdobrava na tentativa de decifrar o incompreensível, esse fragmento de zênite provindo do além. Um verdadeiro… horror cósmico. tô tentando, tá?
Duas observações: 1) esse texto não contém spoilers significativos, e é perfeitamente seguro para leitura por quem não jogou; 2) nosso outro redator, Cauê, também fez uma análise sobre Look Outside – clique aqui para ler!

“NÃO. Espera, não olhe pra fora. Eu… fiquei confusa. Eu não sei o que aquilo fez comigo.”
Quando primeiro descobri LOOK OUTSIDE, um dos novos títulos publicados pela santíssima Devolver Digital, não fazia ideia do que se tratava. Abri o comunicado de imprensa falando do seu lançamento, sem pretensão alguma, e… Meu deus. Do céu. O que eu presenciei foi simplesmente absurdo: me apaixonei instantaneamente pelo trailer, e praticamente todo o mérito se deve ao IMENSO talento artístico de seu desenvolvedor, Francis Coulombe. Assista apenas 20 segundos e você já irá entender a vibe de tudo (alerta de gore cartunizado em pixels):
Em poucas palavras, contemplar as artes de Coulombe foi o deleite de experienciar um artista majestoso pela primeira vez. Suas obras de pixel art são aquelas que, em seu ápice criativo, se apresentam tão magníficas que é praticamente impossível não identificar sua autoria imediatamente; como se um fã entusiasta fosse capaz de instintivamente reconhecer as obras produzidas por seu artista predileto. Artes carregadas de uma qualidade tão sublime, transpirando a individualidade da mente de onde escorreu, que é praticamente impossível desassociá-las de seus principais autores.

(Fonte: Francis Coulombe/Reddit)
Francis Coulombe, ou @frankiepixelshow para os íntimos, era um criador de artes de terror cósmico e body horror (“horror corporal”, “horror biológico”; vamos falar mais disso depois) quando decidiu definitivamente começar com a produção de jogos de RPGMaker. Um artista que, apesar de possuir um extraordinário talento pra as mais inimagináveis monstruosidades de tecido deformado, carne virulenta de imensidão vertiginosamente incompreensível e membros fractais que se espiralam em ilimitadas bifurcações psicodélicas, só começou a ganhar seu merecidíssimo reconhecimento a partir do lançamento de seu primeiro grande título – o objeto de análise desse texto, Look Outside.
Tudo isso enquanto seu pet-project de tempos, “Malison, The Cursed City”, continua em produção, com o artista dando continuidade aos desenhos e conteúdos de ambos em suas redes sociais – particularmente a Twitch, espaço que utiliza pra discutir também os conteúdos que ainda não foram finalizados para Look Outside (vamos falar sobre isso também).


Sem mais delongas:
O quê é Look Outside?
Se eu fosse tentar explicar o quê é esse mais novo fenômeno do horror de RPGMaker, eu o subdividiria em três categorias de horror: uma alma do bom e velho Survival Horror, tomando forma através das terminações nervosas do Body Horror (Horror Venéreo, Corpóreo, Biológico) e, por fim, colocada em movimento pelos fios invisíveis da literatura do Horror Cósmico (Horror Lovecraftiano, Eldritch Horror, etc.). Como já ficou evidente, já sou muito familiarizado – e apaixonado – pelos dois primeiros, mas o último… nunca me passou pela cabeça investigar o “terror do além”. Haviam forças que me repeliam desse “horror do incompreensível” – poderia ser uma leitura desafiadora demais para mim, que não possuía hábito literário, e minha incapacidade de compreendê-la resultaria em desgosto; ou, pior ainda, de me aterrorizar em um nível tão primal que, de alguma forma, mudaria para sempre minha percepção da existência humana. Tenho que agradecer Stranger Things por ser uma acessível porta de entrada ao gênero, em particular.
A premissa do jogo é uma que já foi semelhantemente utilizada por outras obras: um agente alienígena (seja ele um fragmento de cometa de matiz caleidoscópica e densidade indescritível que expande sua “doença das estrelas” indefinidamente; uma guerra interplanetária com conquistadores hiper-inteligentes de outra galáxia; a implosão do Sol; ou até a evolução de uma Inteligência Artifical sanguinária capaz de modificar o tecido da realidade apenas para sentir prazer pela tortura de humanos) entra em contato com a humanidade por uma série de eventualidades – muitas vezes imprevisíveis – resultando em perdas catastróficas para toda a vida no globo terrestre.
Em Look Outside, o sono de todos é interrompido por crípticas mensagens oníricas que envolvem um “chamado celestial”, e, assim como moscas voando em direção a uma lâmpada, todos os seres vivos se entregam ao impulso de contemplar o indescritível fenômeno que adoece os céus, pagando preços inacreditáveis pela curiosidade. Sam, nosso inocente, corajoso e desempregado protagonista, precisa descobrir o que está acontecendo e, sem muitas opções, dar seu melhor para frear o curso do apocalipse enquanto é impossibilitado de sair de seu prédio. Um mísero vislumbre d’O Visitante resulta na pulverização de sua sanidade e na destripação de seu corpo, reconstituídos nas aberrações ensandecidas que vemos pelo prédio através das inexplicáveis forças exercidas pela Entidade. Ah, e isso vale para QUALQUER observação do Visitante: fotografias, gravações, pinturas e reflexos – todos lhe condenam a uma eterna e retorcida existência (Game Overs instantâneos), então cuidado!

Em termos de mecânica, Look Outside funciona como qualquer Survival Horror: há uma gestão de recursos escassos que devem ser encontrados nos apartamentos afora e, muitas vezes, gerenciados em casa. Veja, há diversos sistemas fundamentais que vigoram no apartamento 33 de Sam: 1) segurança, 2) alimentação, 3) higiene e descanso, 4) lazer, 5) sociabilidade e, não menos importante, 6) fabricação. Aviso de antemão que nenhum desses elementos é complexo – não se assuste – e que nenhum deles é “fundamental” para zerar, apesar de que seus bons usos facilitam significativamente sua cruel jornada contra “O Fenômeno”… exceto conseguir novos membros pra sua party, isso sim praticamente todos precisarão.
- Segurança, o mais importante: como em todo Survival Horror, seus saves são limitados por um sistema de tempo, ligado à exploração. A cada cômodo descoberto no edifício, uma hora se passa, te aproximando de um dos diversos finais (apenas “aguarde 15 dias”) e permitindo que você salve o jogo conversando com Sybil, a simpática vizinha que te espiona por buracos na parede. Além disso, uma quantidade crescente de XP por exploração vai se acumulando, incentivando jogadores corajosos a arriscarem perder tudo – esse não é um playstyle obrigatório, salve sempre que achar necessário.
- Alimentação: geladeiras do edifício podem ser saqueadas por comida. Você pode cozinhá-las em casa para restaurar vida e mana, e também pode fazer sanduíches usando pão para consumir durante suas explorações.
- Higiene e Descanso: dormir recupera parte da vida e mana de todos, para além de passar a madrugada (onde você é impossibilitado de explorar o edifício). Você pode usar sabonete e pasta de dente para se limpar, trazendo momentos de reflexão (e crises de pânico) que dão dicas e exploram camadas de personalidade interessantes do protagonista, complementando a lore.
- Lazer: manter a sanidade é fundamental; afinal de contas, não é porque o apocalipse chegou que você vai largar o videogame, né? Usando as fitas encontradas pelo prédio, você pode aprender novas habilidades zerando jogos no console de Sam, e pode passar tempo livre com seu caderno de palavras cruzadas.
- Fabricação: o jogo também possui um sistema cru de crafting de itens, ao qual eu recomendo eventualmente utilizar Cheat Sheets para ver as receitas, já que ele não possui uma implementação muito boa.

em Look Outside
Dica de amigo: com as opções para passar tempo em casa, relacionadas aos segmentos 2 (cozinhar), 3 (escovar os dentes ou tomar banho) e 4 (assistir TV, jogar videogame ou fazer palavras cruzadas), você tem a chance de pessoas aleatórias baterem na sua porta. Poderão ser inimigos, poderão ser aliados, ou meramente vendedores – lembre-se que, mesmo com elevados riscos de morrer, você muitas vezes também é recompensado por ser corajoso! #fikdik



Falamos da narrativa, tecida da mesma linha que se constitui o Horror Cósmico. Falamos da gameplay, cujo espírito provém das leis do Survival Horror. Agora, vamos falar de desgraça: o combate de Look Outside, cuja picância provém do curioso e eternamente inovador Body Horror.
Diferentemente da forma como outros títulos de RPGMaker trabalham, tentando incrementar camadas de complexidade estratégica à simplista base do sistema de combate da engine (um exemplo seria Fear & Hunger e seu enfoque em desmembramentos), Look Outside segue a rota contrária, dando ênfase em surpresas desagradáveis e assustadoras através de “etapas de evolução” de inimigos durante o combate. Assim como em Lisa: The Painful RPG, toda preparação prévia contra inimigos poderosos será necessária… nunca se sabe as cartas que terão na manga.
Funciona de forma simples: de inimigos simples aos mais extraordinários, muitos – não todos – possuem diversas “formas” ou “etapas de evolução/mutação” em combate, correspondentes à quantidade de turnos passados ou a quanto dano já sofreram. Por exemplo: o primeiro vizinho enlouquecido que encontramos no prédio praticamente não é um perigo, até descobrirmos que ele escondia uma faca consigo; outros inimigos podem crescer tumores imensos, extrair seus membros, dentes ou olhos em excesso pra criar inimigos menores e criar distrações no combate; ou, muito pelo contrário, podem remover camadas externas de proteção pra se tornar mais vulneráveis, mas também desbloquear ações muito mais poderosas, na tentativa de sumariamente executar sua gangue – como um Carro de Carne que te engole e te levar pra um lugar “muito especial”.
Sem mais spoilers. Sério. Esse jogo tem MUITO conteúdo, e muitas vezes é capaz de realmente te surpreender de formas inacreditavelmente desagradáveis (no sentido bom!), o que lhe confere muitos pontos bônus no quesito dos três gêneros.
As artes? Descrições em texto de mutações horrendas e condenações ao eterno sofrimento para além da compreensão humana? Como eu havia dito: são sublimes. São os pontos altos do jogo que realmente nos marcam, uma execução magistral de múltiplos gêneros simultâneos do horror.

Os tropeços no escuro
No entanto, a história de Look Outside, assim como suas artes e jogabilidade, opera como uma verdadeira montanha russa de emoções: pontos altos alcançam as estrelas – ouso dizer, inclusive, que o final “Truth” (não significa que é o “final verdadeiro”) é um dos mais memoráveis que já vivi em um jogo; mas, como contrapeso, seus pontos baixos tornam a experiência por vezes menos acessível, podem deixar a desejar pela falta de aprofundamento narrativo em certos plots secundários, ou até confundir jogadores que não compreendem o grau de seriedade que o jogo se propõe – ou não – a manter.
Para não tirar o mérito desse jogo brilhante, ressalto que a premissa se apresentava, ao meu ver, como um terreno riquíssimo de possibilidades malucas a serem exploradas por Coulombe. Narrativas como os vizinhos de monstros-dente, o romance de Rafta e Nestor, a criança perdida Sophie e os sobreviventes do Reino dos Esporos são apenas algumas das insanas alucinações do autor, como se cada andar e cada apartamento pudesse ser seu próprio reino, com seus próprios personagens, cada qual com suas próprias histórias. Tal exploração de possibilidades é fundamental para uma obra de Body Horror, conforme minha própria interpretação do gênero:
É isso que encanta alguns e afasta outros das obras de David Cronenberg, como The Fly (1986), eXistenZ (1999) ou o mais recente Crimes of the Future (2022): roteiros que giram em torno de relações parasíticas, mutações transhumanistas e doenças infecciosas viscerais pouco importam se você não considerar a perda ou degeneração da humanidade como ponto central no roteiro, um foco principal na vida dessas pessoas. Acredito que esse é o fragmento fundamental para apreciar o horror biológico, que é compreender o estado de “ser humano”.
Parando pra pensar, talvez eu deveria ler Kafka em breve…
Para mim, o encantamento do Body Horror se refere ao momento mágico em que um ser possui ou retém a capacidade de dialogar, seja qual for sua linguagem. Para além de perceber, a capacidade de REconhecer, de racionalizar, de interpretar, de sustentar consciência, sentiência, auto-conceitualização. “Eu sou eu, e você é você. E nós não somos iguais.”

É por isso que também fui pego de surpresa – dessa vez, negativamente – quando me deparei com alguns poucos momentos em que a deprimente visão de corpos mutantes, agressivos e em variados graus de demência davam vazão a momentos de humor nonsense, como o mercadão do Mutt’s Fish ‘n’ Chips, me fazendo questionar até onde iria a seriedade de Look Outside. Mas, não sei. Talvez sejam momentos como esse, em que a normalidade se sobrepõe ao sobrenatural, que a rotina de jogar videogame ofusca o fato de estarmos num apocalipse, de conversar com criaturas grotescas enquanto fazem piadas sobre seus órgãos vitais esparramados por aí, são as coisas que dão um charme singular à essas obras.
Por fim, antes de chegarmos às conclusões da análise, farei sim uma crítica mais concreta, e adicionarei uma ressalva.
O jogo infelizmente sofre com uma série de elementos desbalanceados, muito provavelmente pelo fato de Look Outside ter sido fruto de uma game jam que claramente explodiu em proporção; é por conta disso, por exemplo, que a comunidade sempre ressalta a importância de preencher sua party o mais rápido possível, já que o jogo possui um péssimo balanceamento para quem decide jogar controlando apenas o Sam. Pior que isso, no lançamento, existiam party members que podemos recrutar com níveis de poder imensos – aliados poderosíssimos capazes de aniquilar até deuses – enquanto outros possuem habilidades confusas ou patéticas, renderizando-os ineficientes demais para considerar sua utilização, mesmo em níveis mais altos. Da mesma moeda, o jogo sofre também de alguns conteúdos que estão claramente incompletos e inacabados, o que ironicamente induz mais medo e incerteza sob o jogador (isso é bom!) mas ao mesmo tempo nos faz questionar se esperar pelos updates, que são consistentes, seria uma decisão melhor antes de começar a jogar.
Coulombe deixou claro em seus canais de comunicação, particularmente sua Twitch e seu canal do Discord, que continuará desenvolvendo as narrativas que não foram finalizadas (como a história da moradora Sophie e sua mãe), reimplementará inimigos que não tiveram o polimento adequado e continuará trabalhando com o rebalanceamento de todos os aliados e inimigos, como ele mesmo já anda fazendo.
Conclusão: contemplando novos horizontes
Uau. Que jornada.
Look Outside pode ser sobre o oculto e o desconhecido, e isso poderia ter me afastado. Mas foi graças à sua existência e essa mesclagem de horrores do qual sou fã que a oportunidade de me aproximar ainda mais do horror cósmico se tornou possível. E é por esse caminho iluminado que pessoalmente gostaria de agradecer à Coulombe pela experiência: o horror de sua obra me deixou paralisado como pouquíssimos jogos conseguem me deixar hoje em dia, e isso me fez me sentir um pouco mais vivo. São essas as obras de arte que dão significado à cultura, de certa forma.
Se você veio só por isso, e ainda não ficou claro: sim, eu indico esse jogo. Apenas para quem tiver coragem, é claro.
Uma cópia de Look Outside para PC foi concedida pela Devolver Digital para análise no Recanto do Dragão.