No papel, Nightmare Reaper não tem como funcionar. Ele é um FPS RPG roguelite de suspense que mistura tanto ideias antigas quanto novas, aparentemente sem nenhuma preocupação de como elas irão funcionar juntas. Ah, vale mencionar que ele ficou no programa de Early Access da Steam por três anos.
Então como que ele saiu tão bom?
Nightmare Reaper foi originalmente lançado em Early Access no dia 16 de julho de 2019, mas foi só em 28 de março de 2022 que ele recebeu seu lançamento oficial junto com seu terceiro e último capítulo.
Foram três árduos anos de desenvolvimento contínuo que trouxeram consigo, com o tempo, enormes mudanças ao jogo, fazendo com que até o estado atual do primeiro capítulo esteja quase irreconhecível se comparado à época do Early Access.
Nightmare Reaper também faz parte de uma onda de FPS indies inspirados em jogos old school do gênero, carinhosamente intitulados de “boomer shooters” pela comunidade. Jogos como Amid Evil, Hedon e Dusk são apenas alguns dos principais exemplos de jogos do tipo.
Ao contrário do que possa parecer, os jogos deste subgênero acabaram conseguindo criar suas próprias identidades e, conforme o tempo passa, vão se tornando mais e mais complexos.
Como uma representação básica da estrutura de um boomer shooter, imagine uma fase do DOOM original ou do primeiro Quake, onde você passa seu tempo não só atirando em galerias de inimigos, mas também explorando. Existem segredos e emboscadas em quantidades similares, e você provavelmente vai passar mais tempo tentando achar a saída do que atirando em inimigos.
Ok, eu acabei de mentir um pouquinho pra você. Os boomer shooters costumam ignorar várias das nuances de jogos old school para, em troca, te passar o mesmo “sentimento” deles (ou a mesma vibe, se você for um zoomer como eu).
Pode parecer que eu estou criticando eles por isso, mas é um elogio. Afinal, os antigos clássicos de FPS ainda estão disponíveis na internet para serem jogados. É por isso que eles não precisam de meros substitutos, mas sim de evoluções.
Boomer shooters são melhores descritos como jogos de FPS mais modernos que evoluíram diretamente dos jogos de tiro old school, e não de franquias mais pipoca como Call of Duty (isso não quer dizer que eu não goste de CoD, ok?).
Porém, o caso de Nightmare Reaper é um pouco mais complicado que isso. Além de utilizar estruturas de fase similares à uma mistura de dungeon crawlers com a exploração de DOOM, sem contar nos visuais estilizados à altura, ele também usa mecânicas leves de roguelites, looter-shooters e até de jogos de terror.
Isso tudo soa como um ensopado de subgêneros e categorizações desnecessárias, então saiba que você não precisa saber de nada disso pra aproveitar Nightmare Reaper, pois ele ainda fala por si só.
Por mais que suas inúmeras inspirações possam parecer confusas, elas clicam perfeitamente quando você joga. Todas as mecânicas fluem perfeitamente entre si sem atrapalharem umas às outras, e isso acontece pois elas foram adaptadas para funcionarem em conjunto. Vamos dar uma olhadinha em alguns exemplos disso:
- Já que você sabe que pode manter apenas uma arma (na maior parte do jogo, ao menos) após terminar uma fase, você não precisa se preocupar com quinhentas estatísticas e builds como precisaria em um clássico looter-shooter como Borderlands;
- As diferentes raridades de armamentos não possuem diferença de DPS (dano por segundo) entre si, apenas habilidades especiais passivas, o que impede o jogo de virar uma corrida de números crescentes e inimigos que lembram mais tanques de guerra feitos de carne do que monstros;
- Os mapas e seus objetivos são gerados aleatoriamente através de presets de terreno, o que deixa a exploração mais simples do que em um jogo formado por labirintos como Wolfenstein 3D ou DOOM;
- Ao morrer, você só volta ao início daquela fase ao invés de ter que rejogar a campanha inteira, o que coloca em debate o uso do termo “roguelite” como um subgênero do jogo, mas também combina com a densidade de conteúdo oferecido por Nightmare Reaper se considerarmos o tamanho enorme de sua história.
Essas são todas concessões que Nightmare Reaper faz para não te encher de informações desnecessárias no meio de sua carnificina. Ele encontra um equilíbrio em sua mistura imensurável de gêneros e subgêneros.
Isso sem contar nos três (sim, três) minigames inesperadamente longos e (na maior parte do tempo) divertidos que você deve concluir para melhorar as habilidades da Paciente. Um no estilo Mario, um no estilo Pokémon, e um shoot ’em up genérico.
Ah é, acho importante clarificar: a “Paciente” é a protagonista do jogo. Esse não é o nome dela, pois a gente não fica sabendo dele pela história. Nas entradas de diário do psiquiatra dela, ele se refere à ela como a Paciente dele, então é esse o nome que irei usar para não deixar as coisas confusas.
Se você já jogou games do American McGee da Alice, a Paciente vai soar familiar. Além de visuais similares, as duas protagonistas passam por problemas psiquiátricos sérios em graus parecidos (mas nem de perto iguais).
As seções de tiroteio de Nightmare Reaper formam a maior parte da experiência, mas não são ela inteira. Entre cada uma das 84 fases, você acorda de seu pesadelo sangrento presa no hospício. Todo o tiroteio e dungeon crawling que você faz se passa nos violentos sonhos da Paciente, e você ganha um tempo de silêncio para explorar o hospício quando ela acorda.
O local vai se revelando pouco a pouco conforme você avança pelas fases, em um ritmo lento mas consistentemente engajante. Muitas vezes, algum barulho fora do comum vai te chamar a atenção o suficiente para você dar uma explorada, que é repleta de jumpscares leves e uma atmosfera honestamente enervante.
Você sempre vai atingir alguma parede em seu progresso pelo hospício, então o local nunca deixa de ser claustrofóbico. Saber que de cada dez portas, nove delas estarão fechadas dá bastante agonia, e você deve varrer periodicamente todas as premissas para saber se alguma coisa nova apareceu por ali.
Além disso, a cada fase que você termina, mais uma nota de seu psiquiatra aparece em seu diário. Todas elas são vagas e não fazem muito sentido por si próprias, mas servem para manter seu interesse e engajamento na narrativa, que vai se arrastando por pouco em sua mente, e começa a fazer sentido quando você libera todas as entradas.
Os pesadelos distintivamente old school da Paciente também são recontextualizados com o tempo, mas isso é algo que eu vou deixar para você descobrir ao jogar.
Voltando às seções de pesadelo, elas não são só numerosas, mas também variadas.
De três em três fases, o tema e os presets de geração de mapa mudam completamente. De mansões vitorianas e vilas medievais até uma penitenciária e as ruínas submersas de Atlântida, nenhum tema foge das garras de Nightmare Reaper.
Eles ainda conseguem se manter estruturalmente distintos devido ao sistema de geração de fase que, mesmo que às vezes seja simples demais (o que gera algumas fases parecidas dentro de um mesmo tema), consegue também dar um toque de “feito à mão” para cada um dos locais.
Conforme você vai avançando no jogo, os temas ficam mais complexos e bem executados. A partir do 2º capítulo, você explora alguns hubs onde pode escolher a ordem na qual irá fazer os próximos grupos de três missões. A partir do 3º, os hubs se tornam fases inteiras feitas à mão com progressão semi-linear.
Os três capítulos de Nightmare Reaper fazem com que ele pareça três jogos completamente diferentes.
O 1º é o mais tradicional e lento, mas isso não significa que ele é ruim. Longe disso, demonstra um foco impressionante nos fundamentos de FPS com diversos encontros de inimigos que vão além das simples arenas. O próprio ambiente à sua volta deve ser considerado cuidadosamente para você conseguir sobreviver.
Ele é o capítulo mais focado em pura sobrevivência. Já que você só pode manter as armas mais fracas naquele ponto, é sempre importante tentar arranjar armas consistentes de nível dois assim que possível, e carregar consigo múltiplos tipos diferentes para lidar com os inimigos de acordo.
Mesmo se tornando mais situacionais nos próximos capítulos, as armas corpo a corpo formam uma das categorias mais fortes de armamento no 1º. Poder cortar inimigos incessantemente com sua katana é um privilégio essencial que pode ser aproveitado em especial com as áreas mais apertadas do capítulo introdutório.
O 2º é meu favorito, e o mais único. Ele sai dos temas medievais e cavernosos para atingir um clima urbano e meio grimey, lotado de homenagens a jogos como SiN, F.E.A.R e Silent Hill. Se você veio melhorando suas habilidades periodicamente com os minigames, você ainda ganha acesso à um dash preso ao chão e eventualmente até um gancho que você pode utilizar para escalar as paredes das fases, carregando um novo impulso de verticalidade aos seus designs.
As lutas começam a parecer mais brigas de recursos à longo prazo do que a sobrevivência imediatista do 1º capítulo, e os inimigos começam a se tornar mais numerosos.
Eu me assustei com o tamanho de algumas fases daquele capítulo. As lutas em si continuam durando uma quantidade saudável de tempo e te dão tempo pra respirar, mas os mapas se tornaram gigantes para acomodar suas novas ferramentas de movimento, o que torna a exploração ainda mais satisfatória.
O meu pacote de fases favorito está neste capítulo, e é o Vermilion Princess. Neste barco gigante e meio enferrujado, suas lutas podem ocorrer tanto em salões enormes quanto em corredores claustrofóbicos. Ele encapsula todo o capítulo perfeitamente, e ainda adiciona alguns elementos marítimos de puzzle para se distinguir.
+Leia também: Shadow Warrior 3 tenta ser “Eterno”, mas só fica no Efêmero (Análise)
O 3º e último capítulo é facilmente descrito como uma viagem ao absurdo e às profundezas do subconsciente, de maneira similar ao 3º capítulo do colega de gênero de Nightmare Reaper, DUSK.
Os mapas começam a ser enchidos de teleportes, repartido em múltiplos estilhaços separados uns dos outros. As arenas começam a ficar tão abertas e abarrotadas de inimigos que o loop de combate começa a se assimilar ao caos de DOOM Eternal, e a guerra começa a se voltar à sua proficiência com o uso de técnicas de movimentação como suas ferramentas mais importantes.
Algumas das fases pegam pesado na complexidade dos layouts e posicionamento de inimigos, e os atiradores podem te matar em instantes. É um clímax perfeito para Nightmare Reaper.
Todos os capítulos são acompanhados de uma trilha sonora de metal de Andrew Hulshult, que a esse ponto parece estar sempre envolvido em todos os projetos de FPS indies já criados. Além da OST das expansões de DOOM Eternal, claro.
As músicas são implementadas de maneira intrigante no jogo, pois elas só tocam durante o combate. Toda sua estadia no hospício e períodos de exploração fora do tiroteio são apenas acompanhadas de sons ambientes, que também são cortesia de Hulshult.
Essa é uma escolha aplaudível, pois contrasta os pontos de alta adrenalina com os quietos momentos de reflexão e suspense do resto da experiência, o que ajuda a deixar Nightmare Reaper sempre com um pé no chão até em suas partes mais caóticas.
Eu vou falar a real aqui. Por mais que os efeitos sonoros e trilha ambiente de Nightmare Reaper sejam incríveis, as músicas de metal de Hushult deixaram a desejar. Elas são perfeitamente aceitáveis e detalhadas, mas seguem a mesma linha estilística que ele aplica à quase todos seus projetos, o que acaba deixando a ambientação cair na mesmice.
Em algumas das seções da trilha, como na melancólica introdução de Do Not Reanimate, você consegue ter um exemplo do que o compositor consegue fazer quando não se restringe aos mesmos riffs de guitarra. Infelizmente, eles esmaecem da paisagem sonora pouco depois do início da música para dar espaço para… ainda mais riffs de guitarra.
Mesmo assim, eu gostaria de tomar um tempinho para aplaudir Digging Up Memories, que consegue se manter atmosférica mesmo em suas seções mais agressivas. Os choros em coral e sintetizadores leves e misteriosos se mantém proeminentes em meio aos gritos grossos e contínuos da agressiva guitarra de Hulshult.
Nightmare Reaper é o ideal platônico de um jogo de ação. Para atingir isso, não foi necessário apenas um combate profundo e barulhento, mas também momentos calmos de introspecção. Saber parar para respirar fundo é tão importante quanto o ato de berrar.
Ele traz consigo o sentimento de exploração de jogos old school do gênero enquanto mistura inúmeras características de diversas origens, com o cuidado necessário para fazê-las funcionarem sem atrapalharem umas às outras, e ainda traz um pacote lotado de visuais e designs próprios à sua identidade.
Tanto uma homenagem a todo tipo de FPS antigo quanto ao estado atual do gênero, Nightmare Reaper celebra seu próprio sucesso com suas inúmeras qualidades únicas. Aqui nenhum fã de FPS fica para trás.
Uma cópia gratuita de Nightmare Reaper para a plataforma Steam foi concedida pela Blazing Bit Games para análise no Recanto do Dragão.