Twilight Princess é um dos melhores jogos já criados. Você concordando ou não com essa afirmação, a maioria das pessoas que o conhecem sabem que esse jogo é fantástico em muita coisa. Um espetáculo visual, com gameplay inventivo e interessante e uma das melhores ambientações em jogos de modo geral. Twilight Princess pode não ter deixado o mesmo marco que Ocarina of Time conquistou na indústria e nos jogadores, mas ele é um dos jogos mais incríveis que ficou preso na sombra de OoT. Não por ser pior do que ele, mas simplesmente por não atrair a mesma atenção, e por não receber tanta positividade e honrarias quanto Ocarina of Time. Isso não é culpa do jogo. Se você olhar além das críticas de outras pessoas e jogar ele de verdade, é um dos jogos mais fáceis de se apaixonar que eu já joguei. Um dos fortes motivos para esse jogo ser tão bom é seu foco no realismo, na ambientação, nos personagens e na história. Todos os fatores do jogo são pensados para criarem um sentimento específico no jogador, seja ele medo, curiosidade ou pura imersão, imersão essa que é muito proporcionada pela temática realista do jogo, fazendo você ter uma visão mais, de fato, realista das coisas que o jogo apresenta, com um universo e personagens que são reais, mesmo que não tão profundos.
Embora essa seja uma história de aventura, ela é tematicamente melancólica, enquanto passa uma mensagem majoritariamente otimista. Essa história pode ser resumida de um jeito que pareça qualquer outro Zelda, porque, em teoria, a maioria dos jogos tem os mesmos clichês em história que aventuras normais de heróis salvando o mundo (e isso não é ruim). O que diferencia cada uma dessas histórias é sua execução, e é assim que Twilight Princess se destaca por buscar um sentimento muito mais profundo, pessoal e bonito, que faz o jogador se sentir na pele dos personagens. Claro, se sentir na pele de um personagem é bem relativo. Eu me sinto na pele do Fox McCloud, não porque eu entendo os medos e sentimentos dele, mas porque quando ele tá desviando de bombas e tentando destruir partes de um robô gigante eu me sinto parte disso, como se estivesse realmente nessa situação intensa e desesperadora. Mas eu me refiro ao se sentir na pele de um modo sentimental, estabelecer uma conexão invisível entre suas emoções e as dos personagens. Não só os métodos de Twilight são bem originais pra franquia, como também os próprios personagens são bem diferentes, não por serem estranhos ou pioneiros, mas porque não são os personagens que costumam ter foco em uma história de herói, e muito menos em uma de Zelda. Os personagens podem ser mais do que boas ideias, falas e carisma, pois também podem ser ferramentas pelo qual a história pode se desenvolver. E, nisso, cada personagem de Twilight Princess é importante, porque eles em alguma coisa desenvolvem a história e outros personagens, além de, individualmente expressarem bastante vida nas suas ações e falas, como se eles realmente fossem mais do que apenas NPCs, ou seja, pessoas.
Eu poderia fazer um texto sobre o jogo em geral, mas eu resolvi que ia focar em apenas um assunto, e agora que nos ambientamos em como esse jogo é construído, podemos entrar nele. Em um mar de personagens bem feitos e interessantes, um deles se destacou pra mim. Não vou fazer muito mistério porque você já sabe quem é, mas o protagonista desse jogo é o mais interessante da franquia. Não digo isso para desmerecer os outros Links, afinal, a execução de sua personalidade e história vai variar bastante em cada jogo e ninguém pode dizer qual é objetivamente o melhor. Mas, a maneira como esse jogo usa o Link, como ele cria esse protagonista que, teoricamente, é apenas um espelho do jogador, é algo que me fascina e me deixou muito interessada na história. Inicialmente, vamos tentar falar sobre quem é o Link, de um modo geral.
Link é, obviamente, o protagonista da franquia. Cada jogo tem seu próprio Link, agora, como eles são relacionados cronologicamente não me perguntem mas é legal pensar em cada jogo como algo único, separado, e dessa forma cada Link é totalmente único também. Mas, o Link tem algumas características chave que definem quem ele é, e todos (com raras exceções) possuem todas, ou a maioria dessas características. Primeiramente, o Link não fala, ele só pode gritar, gemer e às vezes dizer umas coisas como “Oryaaa!” ou coisa assim. O motivo pra ele não falar é que, sendo um protagonista mudo, o jogador pode se projetar nele, como se fosse você ao invés do Link. Isso também é evidenciado pelos personagens na maioria dos jogos te chamarem pelo nome que você escolheu em seu save, e não de Link, como em Breath of the Wild. Os Links também, em sua maioria, usam verde, embora esse padrão tenha sido quebrado recentemente. E, por último, ele precisa ser corajoso e determinado em sua personalidade. O Link de Ocarina of Time é mudo, verde e corajoso, então ele cumpre todos os requisitos. O Link de Twilight princess é mudo, verde e corajoso, ele também cumpre todos os requisitos. Então de que adianta fazer um texto sobre eles se eles possuem a mesma base? O que faz um personagem é muito mais do que uma descrição rasa com poucas palavras de quem ele é, pois personagens são criados em situações na história que revelam quem eles são, escritos em uma narrativa, não apenas em uma descrição. O Link de Ocarina of Time é, assim como outros Links e muitos protagonistas mudos, não muito mais que essa descrição. Cumprir estes requisitos é o suficiente para esses personagens, e não precisa de mais que isso, porque a execução deles é bem simples. Essa execução visa criar um personagem fácil de se projetar, que, como não tem tantos sentimentos, se torna fácil de se relacionar. Afinal, quando você cai qualquer um grita, quando é atacado também e você fica impressionado quando algo grandioso acontece. Mas, eu não digo isso desmerecendo esse personagem, aliás, existe um momento vivo com uma luzinha de personalidade no momento em que ele recebe a ocarina da Saria e se afasta lentamente, andando de costas, para então tomar coragem e sair correndo. É uma cena muito boa, memorável e mostra mais do que apenas um modelo 3D feito pra ser seu espelho. Esse espelho possui muito valor porque evoca sentimentos específicos que, se você está sentindo, já cumprem seu papel, dando ao jogador uma espécie de imersão de qualquer jeito.
Se não ficou óbvio, o motivo pra esse texto existir é que em Twilight Princess o Link é feito diferente. Não só o personagem, isoladamente, é muito bom, mas a história também é criada a partir dele, para ele e se desenvolve lado a lado com o personagem. Isso começa na apresentação dele, um menino esforçado, gentil, bondoso, responsável e feliz, vivendo em uma pequena vila com um cotidiano normal. Esse Link começa tendo pessoas para se importar, um lugar para chamar de lar, e você experiencia, nas primeiras horas de gameplay, o cotidiano desse personagem. Você se acostuma com os personagens, e mesmo que não sejam fortes, você cria acaba criando vínculos com eles. Você pode não gostar das crianças, mas quando algo acontece com elas, você sente uma leve preocupação ainda assim. Isso acontece porque esses personagens são importantes para o protagonista, são família pra ele. Esse não é um Link que apenas quer salvar o mundo porque ele é um herói destinado a isso, esse Link quer, antes de tudo, proteger as pessoas que ele ama. Muita gente não gosta do começo desse jogo mas eu defendo que é uma das coisas mais legais dele, porque estabelece muito bem a vida cotidiana do personagem e os vínculos entre ele e as pessoas da vila, além de nos apresentar ao próprio protagonista.
Mas, nesse ponto da história, nosso Link é meramente uma descrição. Nada aconteceu na vida dele, então só esse lado do personagem pode ser mostrado. Então seguimos no momento que a história realmente começa, quando a vila é invadida por monstros, as crianças são capturadas, os adultos feridos e a melhor amiga do Link desaparece. Link é nocauteado, mas quando acorda e não vê seus amigos, corre para tentar encontrá-los e se depara com uma parede negra no caminho. Dessa parede uma mão gigante puxa ele pra dentro, e depois de um encontro com um monstro, temos o momento que ele se transforma em um lobo. Nesse momento, Link grita de dor, e você realmente sente só de escutar. Não é só um “Ahh!”, ele realmente mostrou dor, porque ele não é imbatível. No momento, a vida do Link foi quebrada em pedaços, ele agora está encarcerado, sem saber se as pessoas que ele ama estão sequer vivas e ele simplesmente perdeu tudo que tem. Esse começo cria um mistério fantástico, e ainda mais, cria uma incerteza pelo futuro e preocupação pelas pessoas importantes pro seu personagem. No resto da história, esses personagens são usados como motivação principal do Link para seguir em frente, se tornam sua maior preocupação.
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Quando você finalmente consegue sair da forma de um lobo e recuperar sua forma humana, o espírito da floresta dá a Link a túnica verde de um herói do passado, como um sinal de que ele é o herói que Hyrule precisa. Depois de escutar tudo que o espírito tem a dizer, ele tem um momento de reflexão. Você costuma ver isso em personagens mudos? Ele para, olha pra sua mão por alguns instantes, então sorri. Isso já é interessante por si só, mas a sua interpretação do que ele pensou, e por que ele teve esse momento para refletir pode mudar muita coisa. Nessa aventura nós somos levados a sentir empatia pelo personagem, e também a crer que os acontecimentos o afetam, porque o jogo mostra inúmeras vezes que esse personagem responde às coisas que acontecem com ele com sentimentos reais. Na situação que ele se encontra agora, na incerteza que ele tem se as pessoas que ele ama ainda estão vivas e por ser declarado um herói que vai salvar todo o mundo de uma força maligna sem seu consentimento prévio, a situação de Link não deve ser muito fácil. Quando a fala do espírito terminou, primeiramente ele ficou um tempo parado. Eu acho que não tem como interpretar de outra forma, mas a minha interpretação é que ele precisou de um momento pra absorver isso tudo. Talvez ele estivesse com medo, preocupado ou não sentindo que é capaz, mas então ele olha para a própria mão por um tempo, até que abre um sorriso. Nessa cena ele acaba de fazer uma das coisas mais legais desse jogo — ele se tornou o herói, ao invés de nascer um. Esse Link durante a história mostra que, embora ele seja o herói e seja corajoso, ele também é abalado e às vezes sente medo, normalmente expresso pelos gestos dele ele já que ele não fala, mas acredita em si mesmo e quer proteger as pessoas que ama. Isso o levanta pra seguir em frente. Talvez, no meio da cutscene, ele tinha medo, mas quando ela terminou, esse sorriso mostrou confiança. Mas também não foi um sorriso determinado, mas sim calmo e puro, como alguém que diz “Vai dar tudo certo”. Todos os outros Links são fortes e corajosos e você sabe que não importa o que aconteça eles vão dar a volta por cima, por serem protagonistas. Mas em Twilight, você confia no personagem porque ele provou pra você que mesmo sendo abalado, ele ainda é forte, ele consegue, e tudo que passar por ele, não importa o quão difícil, você sabe em um nível emocional que ele é capaz de vencer. Você sabe que ele é o herói da história, porque você vê ele se tornando o herói, e ele crescendo a cada momento.
O que faz a história especial, e esse personagem especial, é que esses detalhes não fariam a mínima diferença no contexto da história. Ela ainda pode ser resumida do mesmo jeito, os acontecimentos são os mesmos e qualquer Link poderia estar em Twilight Princess que o jogo ainda ia acontecer. Mas esse Link, com gestos e ações, mostra que ele não é só o protagonista, mas também um personagem importante da história com o qual o jogador deve se importar, o protagonista perfeito pra ambientar o jogador na história melancólica e diferente de Twilight Princess, e só com ele o jogo consegue ser tão bom quanto é. Ele não é uma armadura indestrutível, ele não é perfeito, mas ele é forte, e ele vai seguir em frente. Ele não mostra sua personalidade apenas em momentos profundos, pois também é muito legal no sentido de realmente ser muito legal. Ele tem momentos cheio de carisma com o Hero of Time, que ensina habilidades novas pra ele, e você acompanha o personagem se tornando um mestre espadachim de verdade, além de conseguir ver essa forte e interessante conexão entre dois heróis que não se conhecem, e se encontram respeitosamente em rituais místicos para que seus conhecimentos sejam passados. O que acontece é que durante a história ele mostra sua personalidade para todos os lados em todo momento. Ele não precisa ser profundo, mas ele é, ele não precisava ser mais do que só um herói, mas ele é. A história usa esse personagem, como ele é, como base pra desenvolver todo o resto, afinal esta não é uma jornada apenas para salvar o mundo, é algo mais pessoal, algo que é importante para você e para o protagonista, que é palpável e que você consegue entender. Ele apenas quer proteger as pessoas que ama, salvar o mundo é a maneira de fazer isso, simplesmente.
Uma coisa que fortemente complementa o design da personalidade e desenvolvimento do protagonista é a parceira dele nesse jogo, uma mulher estranha que vive nas sombras. Ela se chama Midna e é, em partes, o contrário do Link, ao menos na personalidade. Ela é mais brincalhona, arrogante, maliciosa (arteira), ela também expressa sua opinião frequentemente, o que é na verdade a melhor parte do personagem. Eu de fato poderia falar mais sobre a Midna, porque eu gosto muito dela, mas vamos começar dizendo que ela é o complemento perfeito pro tipo de protagonista que foi criado pro jogo. Como o Link não pode falar, a Midna fala no lugar dele, e você sabe pelos gestos do Link se ele concorda ou não. Se eles reparam em alguma coisa, a Midna vai apontar isso, se ela tiver uma opinião a dizer, você vai poder ter confirmação do que o Link pensa se ele concordar, dando mais expressividade pro personagem pelo uso inteligente do outro. Os dois tem uma dinâmica importante pra história que cria um clima mais leve, em que a Midna vive provocando o Link, e o Link se irrita com ela, mas no fim das contas, eles são parceiros, trabalham juntos, e enquanto você progride na história eles se tornam amigos de verdade que se importam um com o outro. Isso é evidentemente mostrado no momento em que a Midna corre risco de vida, um dos momentos mais imersivos e desesperadores do jogo em que você quer desesperadamente encontrar alguma maneira de salvá-la não importa como, porque é o Link que quer salvar ela tanto assim, é porque ele se importa que o jogador é levado a se importar tanto quanto.
Esse personagem e a maneira como a história é escrita levam o jogador a ter empatia não só pelo protagonista e as pessoas que ele ama, mas ter um entendimento maior sobre a situação do resto do mundo do jogo. A situação do Zora Domain em Ocarina of Time já era bem assustadora, mas aqui houve até morte quando os Zoras foram congelados, te fazendo temer pela vida deles. Isso também pode ser dito sobre a cena assustadora com o espírito contando a história do Fused Shadow pro Link, onde ele tem uma visão bizarra da história, que, quando termina, ele simplesmente cai de joelhos pelo quão sufocante ver essas coisas foi, o que deixa uma marca no jogador. O que eu quero dizer é que essa história só é tão especial como é por causa desse protagonista, que influencia todo o resto da história. Esse jogo é maravilhoso em todos os aspectos e é com certeza o meu favorito da franquia, mas ele também tem o Link que é um ser humano primeiro, e um herói depois. Obrigada.