2023 vem se mostrando um ano de baixos e mais baixos para mim. Ainda no começo de fevereiro, reconheci que me encontro em um episódio depressivo e venho tentando me cuidar com relação a tudo que ocorre ao meu redor. Foi uma enorme ironia do universo trombar com uma experiência como Omori que justamente aborda todas as temáticas com as quais acabei me deparando ao longo dessa jornada, explorando meu atual estado emocional e psicológico.
Pretendo dividir esse texto em três seções: a primeira, onde faço uma apresentação genérica sobre o jogo sem tocar muito na sua trama; a segunda, onde falo explicitamente sobre a história do jogo e as temáticas recorrentes que percebi; e, por último, divagar sobre um paralelo entre Omori e “A Metamorfose” de Franz Kafka, um pensamento que vem alugando um triplex na minha cabeça desde que comecei o jogo.
Omori
Omori é um RPG indie lançado para Windows e Mac no dia 25 de dezembro de 2020 pela artista Omocat, que apresenta uma abordagem onírica em sua estética ao optar na utilização de diversos estilos artísticos, variando desde as pixel arts remanescentes de antepassados do RPG Maker (com uma puxada para o retrô) até animações feitas usando recortes realistas. Todas essas decisões artísticas são, por sua vez, devidamente amarradas com outros aspectos estéticos como a presença de uma palheta de cores pastéis complementares à certas temáticas recorrentes da trama.
A estória do jogo acompanha o protagonista monocromático Sunny explorando um mundo colorido junto de seus amigos (igualmente coloridos) Kel, Hero e Aubrey, em busca do recém-desaparecido integrante Basil. O controle do jogo é exatamente o que se esperar de algo do RPG Maker: você se movimenta com as setas, corre segurando Shift, interage com o Z e abre o menu com X onde você pode organizar seus itens, equipamentos, ataques e alterar as configurações do jogo. Porém, o que fez Omori brilhar ao meu ver foi justamente o que mais o separa desses jogos que o inspiram, isso sendo o seu sistema de combate.
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Familiares com jogos de RPG Maker sabem que há bons anos a engine se popularizou particularmente no meio do terror, com seus jogos mais famosos não contendo quase nenhuma forma de “combate” (exceções notáveis incluem Off, alguns jogos da Funamusea/Mogeko e Lisa: The Painful). Omori se distancia de forma madura de seus predecessores não só no sentido de que se reconhece como um JRPG, mas também como espera que você (jogador) o reconheça e o respeite como o JRPG que ele é. O sistema de combate de Omori é bem semelhante aos RPG’s de turno mais tradicionais no sentido de toda batalha ser uma sequência de tomada de decisões envolvendo a gestão dos seus recursos a curto e longo prazo; esses recursos sendo HEART (vida), JUICE (recurso para os personagens poderem usar suas SKILLS, a “Mana” do jogo) e ENERGY (usado para poder realizar os FOLLOW-UP ATTACKS, ataques extras que cada personagem pode utilizar uma vez por turno).
Porém, a beleza desse sistema nasce justamente da mecânica de “emoções“. De um ponto de vista simplificado, as emoções em Omori funcionam como status conditions de outros JRPGs, forçando jogadores a pensarem fora do binário de “Se o inimigo está com status condition = BOM; Se eu estou com status condition = RUIM”, uma vez que, com exceção de uma delas, todas as outras emoções trazem consigo um efeito similarmente positivo e negativo para o afetado.
O sistema apresenta 5 tipos de emoção: Neutral, Happy, Sad, Angry e Afraid.
- Neutral é o estado básico de todo personagem, ou seja, quando ele em teoria não está sendo afetado por nenhuma emoção.
- Agora, as outras emoções trazem com elas esse conceito de uma vantagem e desvantagem para o portador:
- Um personagem com Happy tem sua velocidade e chance de crítico aumentados, mas, em contrapartida, tem sua taxa de acerto reduzida.
- Sad faz com que o personagem leve menos dano em todos os ataques, porém faz essa diferença de dano ser tirada do JUICE do personagem.
- Por fim, Angry faz o personagem dar mais dano em todos os seus ataques, enquanto também reduz sua defesa.
- Apesar de eu ter citado Afraid entre os 5 estados de emoção, ele é uma coisa muito menos relacionada à batalhas e mais à momentos específicos da narrativa, então serei breve uma vez que a proposta dessa parte do texto é de também ficar longe dos spoilers.
Com isso, Omori consegue criar um sistema de combate que te força a pensar de forma mais variada e considerar o tempo inteiro qual é o melhor caminho a se tomar, já que com toda vantagem vem uma desvantagem (além de que o jogo também possui um sistema de vulnerabilidades de emoções, sendo Happy mais forte contra Angry, Angry mais forte contra Sad e Sad mais forte contra Happy), te fazendo considerar o quão disposto você está a se vulnerabilizar em prol de ter uma possível vantagem nas batalhas.
Mártires e Mudanças
Omori é uma história sobre luto, sobre passagem do tempo e sobre como lidar com ambas as coisas. Ela é dividida em duas possíveis rotas, sendo elas a rota Sunny e a rota Omori, ambas sobre as consequências de como Sunny (o protagonista) lida com seu luto.
O conflito da história se inicia quando a irmã mais velha de Sunny, Mari, se suicida na árvore do quintal traseiro da casa. A partir disso, Sunny se afoga em uma depressão e se isola do mundo externo, passando quatro anos sem sair de casa e vivendo boa parte do seu tempo em seus sonhos, onde ele conserva a imagem de seus amigos e irmã congelados nesse passado perfeito. Entretanto, o grande ponto de ruptura da história é quando, faltando 3 dias para Sunny e sua mãe se mudarem de sua cidade atual, Sunny recebe um bater na porta da frente de sua casa… a partir daí, resta a você, o jogador, decidir qual caminho Sunny irá seguir.
Eu joguei apenas a rota Sunny, então irei dissertar sobre a minha leitura dos temas a partir da interpretação dessa rota em particular. Nessa rota, Omori se mostra um jogo bem maduro e sincero no sentido de como ele bem apresenta o luto se manifestar em todas as personagens da história. Mari, apesar de ser irmã mais velha apenas do protagonista, ainda era uma figura central para todo o cast, sendo também a primogênita da família, namorada do Hero e a “mãezona” do grupo. Sendo assim, a morte dela impacta todo o núcleo do universo de Omori de maneira profunda, e vemos todos os personagens reagirem e lidarem de diferentes formas diante dessa perda. Todavia, o elemento que os unifica aqui, além da perda em comum, é o fato de que todos eles se martirizam de alguma forma.
Durante as sessões de gameplay no mundo real (que é onde você lida diretamente com os personagens cientes sobre o ocorrido, já que eles não são mais idealizações que existem apenas na cabeça de Sunny), é possível notar um “Espectro de Martirização”.
Em um extremo dele se encontram os irmãos Kel e Hero, uma vez que Kel abdica do direito de poder sentir qualquer dor e tristeza da perda de sua amiga em prol de ser um alicerce para seu irmão mais velho, enquanto Hero se proíbe de entrar em um estado de tristeza (já que a única vez que ele entra, acaba descontando toda sua mágoa e frustração em seu irmão mais novo), então escolhendo se afogar em produtividade e estudos, no melhor do melhor da Sociedade do Cansaço.
Em contrapartida, no outro extremo do espectro, vemos Sunny se sentir tão culpado pela morte da irmã que abdica de viver uma vida e encarar as pessoas que ama, assim se isolando em sua casa junto de Aubrey, que se sente tão abandonada ao ver como todos seus amigos lidam com o luto que acaba rejeitando todos e se apegando à imagem da única pessoa que não a abandonou, a Mari.
No exato centro desse espectro é possível ver o Basil, uma vez que apesar dele estar profundamente atrelado à morte da Mari e se sentir terrivelmente culpado todos os dias, implorando por perdão toda vez que encontra Sunny, ele ainda mantém uma imagem externa de que “aquilo já passou”.
Pessoalmente, tenho sentimentos complexos com relação ao Basil, uma vez que todos os personagens são confrontados um pelos outros sobre seus comportamentos com relação ao luto, e através dessa troca buscam ser compreendidos e redimidos; mas isso simplesmente não ocorre com o Basil, uma vez que ele passa a obra inteira sendo mais um plot device do que realmente um personagem que se encaixa organicamente dentro da história. Tanto que o “Good Ending” nos priva de como o resto do cast reage à verdade sobre como Basil decidiu agir perante a morte da Mari, assim tornando o personagem redimido pela obra mas não redimido pelo mundo ao seu redor.
Outra temática recorrente em Omori é o constante e inevitável marchar do tempo: existe uma dicotomia clara de temas que surgem no cast principal entre suas versões idealizadas de sonho e suas versões do mundo real, o exemplo mais claro sendo Aubrey que eu sinto que é um comentário ambulante sobre misoginia normalizada. Não me leve a mal, tá tudo bem existir um papel “antagônico” da parte dela em relação ao Sunny de início, mas ainda assim, toda cena que ela aparece ou está sendo tratada como uma pessoa irredimível, sendo julgada pelo simples fato de existir, ou não sendo ouvida por qualquer razão que seja. E, curiosamente, todos os conflitos do jogo são resolvidos no momento que os protagonistas resolvem ouvir o lado da Aubrey… engraçado, não é mesmo?
Metamorfoses
“Certa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num monstruoso inseto repugnante. Deitado sobre as costas rijas como armaduras, ergueu ligeiramente a cabeça e viu sua barriga marrom e curvada, dividida em segmentos rígidos e arqueados.”
A Metamorfose de Franz Kafka é um daqueles livros tão, mas TÃO obrigatórios que você acha que sabe tudo do livro sem nem ao mesmo precisar ler, aí você lê e percebe que você só tinha pegado o mais superficial do superficial da obra, o que ironicamente também ocorre com Omori.
Assim como A Metamorfose é estigmatizada com “o livro do cara que vira inseto”, Omori sofre do “joguinho de RPG Maker sobre depressão Nº3923983”, mas é engraçado como ambas as obras seguem linhas similares de maneiras contrastantes, especialmente em seus inícios.
Ambas as obras se iniciam apresentando os protagonistas (Gregor e Sunny) em suas formas já “pós-metamorfose” (sendo Gregor já como inseto e Sunny já como Omori); no entanto, enquanto boa parte do primeiro capítulo de A Metamorfose é justamente Gregor refletindo sobre sua recém transformação e tentando se agarrar à sua “humanidade” enquanto analisa seu quarto, lembrando de todo e cada detalhe e sobre como eles remetem a momentos da sua vida, Omori logo de cara nos apresenta ao “White Space”, um lugar que estivemos desde que é possível nos lembrar, mas mesmo assim, despido de qualquer traço de individualidade referente à Sunny, não é à toa que um dos poucos e mais característicos itens do local (a lâmpada preta) é descrita como a “repressão de uma ideia”. Mas, curiosamente, ambos os locais acabam por tomar significados similares aos protagonistas: “Um vazio, uma casa sem ternura. Um lugar não para se viver, mas sim sobreviver”.
As duas obras tratam sobre essas questões de depressão e sobre se reconhecer ou não como humano, mas pra mim o paralelo mais interessante reside justamente nos diferentes níveis de abstração possíveis ao enfrentar a depressão em diferentes momentos da sua vida. Em A Metamorfose, Kafka não nos revela uma idade EXATA para Gregor, mesmo sendo possível especular que ele esteja pelo menos com 20 e alguns quebrados (oh my god, literalmente eu???) devido ao fato de que ele nunca é citado como alguém velho, apesar de já ter vivido um histórico militar e quatro anos de trabalho na empresa atual, enquanto em Omori é canonizado que os acontecimentos que mudam a vida de Sunny ocorrem aos seus meros 12 anos de idade.
Durante o decorrer da obra de Kafka, é muito recorrente ver Gregor tentando se apegar aos resquícios de sua humanidade refletindo sobre o mundo externo e buscando alguma validação vindo dele. Entretanto, isso não ocorre na obra, tanto que no final Gregor é deixado para morrer enquanto sua família sai triunfante por finalmente não ter que conviver com o primogênito maldito, mostrando que ele nunca teve sua humanidade e dignidade verdadeiramente reconhecidas nem por eles, nem por seu trabalho, nem por ninguém. Assim, fomentando a triste história de um homem que na sua vida inteira, e até em seus piores momentos, não conseguiu negar ao mundo externo a ponto de se reconhecer como um inseto, mas nunca questionar por quê o mundo ao seu redor não o reconhecia como humano.
Enquanto isso, em Omori, vemos o exato oposto: ao ser afogado em sua depressão, Sunny não tenta desesperadamente se agarrar ao real ou se refletir a partir do mundo externo. Ele de imediato o nega e, em uma tentativa desesperada de se consolar e abraçar à suas questões mais intrínsecas, cria uma reflexão do que era perfeito ao seu ver, um mundo onde o crush dele é recíproco, onde seus amigos sempre são crianças dispostas a brincar, onde sua irmã ainda vive. Sunny ainda não teve sua individualidade esmagada pela “vida adulta”, então para ele é muito mais simples e viável negar ao mundo externo e se priorizar do que continuar desesperadamente buscando a validação e reinserção em um mundo que o machucou de forma tão profunda e permanente.
Encerramento?
Esse foi meu texto de estreia aqui no Recanto, pretendo continuar nessa linha de textos com uma introdução mais técnica sobre o jogo e depois seguir para um modelo de ensaio onde discuto sobre temas e paralelos que achei conveniente em relação ao jogo, então espero que vocês gostem dos meus devaneios esporádicos.