Imagine a situação em que um camarada gamer te para por aí para lhe fazer a seguinte pergunta: para você, qual é a maior diferença entre Red Dead Redemption (2010) e Red Dead Redemption II (2018)? O que você responderia?
Talvez você aponte a ausência dos sistemas de personagem, como fome e estâmina. Ou talvez sobre o quão importantes são os novos elementos de caça para fabricar cosméticos e aprofundar a imersão proporcionada pela biosfera do jogo. Quem sabe, até, a óbvia diferença de protagonistas: Arthur Morgan no segundo jogo (que, canonicamente, acontece em 1899), e John Marston, seu “protégé” que sobrevive para apagar o legado da gangue na sequel de 1911.
O que EU responderia? Que no primeiro Red Dead Redemption não temos “letterboxing” nas cutscenes. Sim, você pode não ter notado, mas as famigeradas “barras pretas cinematográficas” não estão presentes no primeiro jogo, e é mais ou menos sobre isso que vamos falar hoje.
Atenção: o seguinte texto contém spoilers do final de Red Dead Redemption (2010). Inclusive, hoje é aniversário de 12 anos do jogo, que lançou dia 18 de maio. Coincidência, não?
Esse é um ponto em que já toquei brevemente na análise de Ghost of Tsushima, mas vale reiterar: existem infinitos paralelos traçáveis entre a forma como Cowboys e Samurais são retratados no entretenimento. As maiores diferenças são as culturas regionais e os equipamentos utilizados, principalmente se tratando de suas armas (Revólveres e Katanas).
Já falando das semelhanças, e fazendo um grosseiro reducionismo aqui: muitas vezes, filmes desses dois mundos utilizam artifícios cinematográficos para apresentar a narrativa num ritmo excepcionalmente lento, de forma a estabelecer com calma a reputação e os valores de cada um dos personagens e exaltar a importância deles seguirem suas próprias etiquetas, transparecendo códigos morais através de suas palavras e ações, assim se tornando memoráveis aos espectadores.
É só nas cenas de combate – mortais e velozes como relâmpago – que toda essa tensão lentamente construída é dilacerada em milissegundos. Você pisca e, sem saber o resultado, espera para ver quem saiu vivo e quem virou presunto nos duelos.
É aí que reside a bênção e a maldição dos games: assim como nos livros (e diferente dos filmes), jogos eletrônicos tecnicamente não têm pressa alguma para contar suas histórias. Nada de reclamações por conta de filmes de três (ou mais) horas de duração sem pausa para o banheiro: o consumidor é quem (supostamente) controla do ritmo da narrativa, e pode pausá-la a hora que quiser.
No entanto – e isso deve reverberar bem com os perfeccionistas que estiverem lendo – quando não somos confrontados com limites (de tempo, de recursos, seja qual for), nossos projetos podem facilmente fugir do escopo original e ficarem cada vez mais desnecessariamente colossais.
É esse que me parece ser o maior problema das narrativas da Rockstar, um problema fundamental que consiste nessa obrigação de se mergulhar em toda tangente tecnologicamente possível de se enfiar num único disco, esticando as já longuíssimas campanhas de seus jogos com o máximo de conteúdo extra que conseguirem. Imagine assistir a um filme western longo, mas multiplique a quantidade do conteúdo por vinte (ou cinquenta, dependendo de quantos elementos secundários você pretende explorar).
Jogos longos demais são um problema?
O problema que me incomoda nessa madrugada, precisamente as 5h55 da manhã, após finalmente zerar Red Dead Redemption, é o seguinte: a Rockstar sempre foi meio ruim em casar dilemas morais das suas histórias com elementos da sua jogabilidade.
A maior diferença entre ambas as franquias é que Grand Theft Auto sempre se virou primeiramente ao aspecto de “sandbox“, oferecendo uma infinidade de armas e ferramentas mirabolantes para o jogador interagir com o mundo, e só depois focando nas histórias (que costumam ser mais leves, com um quê de humor sombrio e a vibe de paródia “besteirol”, se comparadas ao irmão mais casca-grossa).
Já em Red Dead Redemption, fica bem mais evidente que falta à Rockstar uma delicadeza, uma finesse maior para trabalhar com seu storytelling mais sério: a ausência de armas automáticas e veículos voadores muda o foco do jogador para detalhes microscópicos irrelevantes que vão do saco do cavalo encolhendo no frio ao excesso de bugs e controles confusos que atrapalham na imersão.
Tudo fica ainda mais evidente quando o jogador é forçado a jogar de forma devagar e reflexiva, cavalgando de missão para missão (até desbloquear pontos de fast travel), te dando tempo de sobra para contemplar cada probleminha na obra.
Outro exemplo: pra quem não sabe, virou costume da empresa regravar os roteiros com diversas frases parecidas para cada cena; se você já morreu e voltou de um checkpoint várias vezes, sabe que os personagens costumam ter várias frases “quase iguais” para cada diálogo, que são selecionadas aleatoriamente para tocar a cada gameplay.
Isso pode soar muito bom do ponto de vista da rejogabilidade, mas de que adianta ter tudo isso se os jogadores, por exemplo, constantemente tem suas conversas interrompidas por conta do cavalo decidir deslizar de skate morro abaixo, ou o Arthur tropeçar numa pedrinha e desmontar que nem um brinquedo vaquina mole-mole?
Essas disparidades entre narrativa e gameplay vão ficando infinitamente piores com a tendência dos jogos modernos de se sentirem obrigados a serem cada vez mais longos, recorrendo então à estratégia de se entupir de filler (Naruto Kai que o diga) para dar conta de alcançar essas longas durações.
Só pra deixar claro que essa problemática da “exaustão” não foi apontada somente nos jogos: The Batman (2022) de Matt Reeves também foi responsável por reacender o mesmo debate na indústria cinematográfica, apesar de obviamente ter tomado proporções diferentes.
Isso tudo misturado com a ambição da Rockstar de criar universos “ainda maiores que a vida real“, com 350 bilhões de NPCs programados para seguir restritas rotinas semanais, além das diversas animações elaboradas para cada micro-ação dos personagens, acabam resultando em problemas como o desnecessariamente longo epílogo de Red Dead Redemption II, que não só serve como começo da história de John Marston mas também dura insuportáveis CINCO HORAS INTEIRAS.
Se você não tem noção do tamanho disso, é praticamente um terço da duração do primeiro jogo (e, novamente, mais longo que praticamente 80% dos filmes médios de Cowboys ou Samurais, inclusive muito maior que The Batman), onde você se encontra preso assistindo cutscenes ou é forçado a realizar tarefas extremamente mundanas e assistir lentíssimas animações para alimentar o gado da fazenda ou cortar lenha. Ou seja, continuam sendo cutscenes, a diferença é que você precisa apertar um ou dois botões de vez em quando para progredir, sem poder pular nada.
Falo disso tudo ignorando, claro, as milhares de horas que desenvolvedores passa dia e noite programando e animando esse conteúdo que não traz praticamente valor algum à experiência dos jogadores (o que considero um desperdício enorme de tempo, dinheiro e vidas humanas).
“Tédio artificial” como ferramenta narrativa
Por um lado, esse perfeccionismo patológico inerente da direção da Rockstar faz com que besteiras como portas flutuando, cavalos despencando como bonecos de pano e pumas bugando dentro de cercas fiquem ainda mais notáveis, já que você é forçado a contemplar esses problemas quando o jogo propositalmente arrasta a cara da história na lama num ritmo desproporcionalmente tedioso.
Por outro lado, e dessa vez encerrando o texto com uma ótica mais positiva, a fabricação de “tédio artificial” poderia ser um elemento muito bem tecido sobre as narrativas da Rockstar, se não acontecessem quase que sem querer.
Eu só me toquei desse potencial quando chegava cada vez mais perto do fim de Red Dead Redemption, já exausto de cometer inúmeros massacres com John Marston (e mesmo assim tendo o máximo de “honra” no psicopático sistema de karma do jogo).
Assim como diz o nome (Red Dead “Redemption”), toda a jornada de Marston se resume ao protagonista “buscar a redenção” pelos crimes que cometeu no passado, para poder fugir e viver em paz com a família (exatamente igual ao plot dos Yakuza 3 a 6).
Porém, ao longo de toda a jornada, somos forçados a repetir esses erros várias e várias vezes. Não por livre arbítrio! Mas sob o pretexto de estarmos sendo manipulados por agentes do governo, ou como uma trocas de favores com deuteragonistas; ou seja, Marston repetidas vezes se vê preso, de um jeito ou de outro, a perpetuar esse ciclo de assassinatos que tenta tanto desesperadamente abandonar.
Mas foi só no final que a “chavinha” do personagem virou para mim, quando me deparei com uma das últimas missões dada no jogo pelo Tio: By Sweat and Toil.
Nela, enquanto estamos guiando o rebanho de vacas para pastar, nos deparamos com um grupo de criminosos tentando frear um trem à tiros e explosivos, e Marston tem (pela primeira vez?) o livre arbítrio do jogo de escolher entre interromper o assalto ou ignorar os criminosos completamente e continuar seguindo o gado.
Foi nesse instante que escolhi intervir e ajudar o motorista do trem, fazendo algo que já não suportava mais, que era atirar em AINDA MAIS gente (por mais que todos eles merecessem).
Mas o fato de que eu tive a escolha de interagir ou não com o cenário apresentado (e não ser uma lista de ordens dada ao jogador numa missão) fez desse o momento mais memorável da campanha para mim. Foi nesse momento que toda aquela infinita repetição de mortes e mais mortes aconteceria mais uma última vez, mas dessa vez trazendo consigo um significado muito diferente das outras mortes que causamos.
John Marston enfim atingiria sua redenção ao escolher, voluntariamente, lutar contra o crime, aceitando sua inevitável natureza violenta e repetindo os mesmos erros do passado que tanto deseja abandonar (que é o fato dele ser um criminoso homicida), mas pela primeira vez fazendo isso totalmente por livre arbítrio, em um ambiente totalmente diferente da sua vida anterior.
É naquela cena em que Marston percebe: pela primeira vez, está lidando com cartas diferentes na sua manga, cartas que ele mesmo construiu ao longo da sua vida, mas cartas que foram construidas com muito sangue, extorsão e vingança. Cartas, também, que não durariam muito tempo até se dissiparem: Marston havia criado inimigos demais nas vidas passadas, e esses inimigos se aproximam cada vez mais rápido para tirar seu “livre arbítrio” finalmente conquistado.
Se todo esse gingado narrativo da Rockstar foi proposital ou não, acho difícil dizer: por conta do tamanho colossal de seus jogos, os pontos negativos ficam ainda mais agressivos e chamativos, e é preciso ter mais cuidado pra que certos momentos de lentidão sirvam como “pontos de respiro” e não exaustivas valas de filler que afastam os jogadores menos pacientes.
Talvez seja exatamente essa ambição gigantesca, junto desses conjuntos de problemas específicos, que fazem da Rockstar a empresa que é hoje. A “assinatura” que a difere de todos os outros desenvolvedores do mundo. Independentemente da minha opinião, eles certamente continuam sendo muito bem-sucedidos na indústria.