Sand Land — a hora da estrela de Akira Toriyama | Análise

Confira nossa análise de Sand Land, um jogo recheado de conteúdo até as beiradas e a obra póstuma de Akira Toriyama.

Quem é vivo sempre aparece né? Depois de muito tempo sem aparecer por aqui com novos textos, decidi retornar para prestar uma devida homenagem pelo Recanto do Dragão para Akira Toriyama através desta singela análise de Sand Land. Então, sem mais delongas (já que já houve um certo atraso na produção desse texto né), vamos seguir com o texto.


Sand Land

Sand Land é um RPG de ação com foco em exploração em mundo aberto desenvolvido pela ILCA (os responsáveis por One Piece Odyssey e pelos remakes da quarta geração de Pokémon), publicado pela Bandai Namco, assim marcando o segundo jogo a ser lançado pela parceria de ambos os nomes desde a formação do Bandai Namco Aces. O jogo é baseado na obra de mesmo nome lançada por Toriyama em novembro de 2000 e fez parte do Sand Land Project, uma iniciativa por parte da Bandai para revitalizar a obra e a transformar em projeto multimídia (abrangendo uma adaptação em anime, o jogo e uma série de action figures). A estória segue Rao, um simples xerife de uma pacata vilazinha no país de Sand Land, que ao não conseguir mais lidar com as mazelas da falta de água que seu povo enfrenta decide juntar forças com o príncipe dos demônios Beelzebub para sair em busca de uma nascente de água.

Como dito anteriormente, o jogo nasce do desejo de transformar Sand Land em um projeto multimídia, e ele entende isso perfeitamente desde o momento em que você o inicia. Sabendo que Sand Land já tinha estreado em mangá e anime, o jogo entende sua maior força como um mídia interativa e explora isso logo do início: em menos de dois minutos de gameplay você já se encontra em uma sequência de perseguição contra um veículo do governo que transporta água, servindo como o primeiro tutorial do jogo e explicando os comando básicos de movimentação e reação do jogador. No terceiro minuto você já está no primeiro combate, entendendo como as partes de ação funcionam melhor, e cinco minutos depois você já é jogado no primeiro mapa para se familiarizar com a exploração, interação com NPCs e os elementos mais suaves de plataforma do jogo. Em exatos quinze minutos de jogo você já teve ter passado por todos os tutoriais principais envolvendo veículos, plataforma, combate, quick time events, sistema de side quests, enquanto o conflito principal da história já foi estabelecido e os quatro protagonistas devidamente apresentados.

Essa é disparada uma das maiores forças de Sand Land, ele se desprende completamente dessa “fórmula” que jogos mais “animescos” costumam ter (e que geram esse preconceito de de que a maioria deles são mucho texto) e investe todas suas fichas em gameplay desde o princípio do jogo, e tudo isso sem abrir mão de uma apresentação espetacular.

Agora elaborando melhor sobre o jogo, Sand Land é um projeto enorme, realmente me faltam palavras para falar sobre o jogo porque ele possui tanto conteúdo adicional (mas TANTO) que parece que realmente a ILCA só fez o jogo inteiro e falou “ok, quantos nichos de gameplay eu consigo colocar nisso agora?”. Durante suas horas e horas de jogatina o seu foco pode variar entre exploração de mundo aberto, combate corpo a corpo, manobramento, combate, construção, personalização e corridas envolvendo múltiplos tipos de veículos, reconstrução e reabitação de uma cidade inteira, seções de stealth, decoração de interiores e tudo isso espalhado em um mapa gigante com múltiplas side quests envolvendo isso. 

Apesar de elogiar tudo isso, devo admitir que as primeiras duas horas (as quais eu considero a seção introdutória do jogo, contendo as primeiras lutas de chefe, primeira “dungeon”, primeiras seções de stealth e etc…) o jogo segura demais a sua mão, te apresentando problemas e logo em seguida te entregando a solução de mão beijada, usando a polêmica yellow painting em excesso (apesar de que da metade do jogo pra frente ela realmente passa a ter um uso muito mais inteligente), fazendo com que eu realmente questionasse se o jogo estava levando minha inteligência a sério nesses momentos iniciais.

Sério, nos primeiros momentos existe uma cena sobre como eles precisam chegar a um certo ponto do mapa e o “único” caminho está barrado por uma base militar; neste ponto do jogo passar por lá é o equivalente a ser gratuitamente fuzilado. Durante a cutscene inteira em que o grupo discute essa questão, uma montanha com uma gruta aberta fica em destaque ao fundo, indicando de maneira sucinta ao jogador uma possível rota alternativa. Entretanto, toda essa objetividade é imediatamente jogada no lixo porque no final da cutscene as personagens literalmente falam “Poxa, tem vento vindo daquela caverna ali né? Vamos tentar ir por lá!”,a câmera dá um zoom descarado na caverna e um ícone enorme fica berrando no meio da tela em direção ao local. 

Apesar de ter dito anteriormente sobre os vários nichos de gameplay, boa parte deles são explorados quase que de maneira superficial (os mais constantes envolvendo plataforma e stealth), enquanto o verdadeiro foco e brilho do jogo reside nos veículos. Sério, durante o jogo você tem de obrigatoriamente usar somente cinco veículos para progredir, entretanto, o tempo todo o jogo acaba te incentivando a sair dos trilhos da progressão principal para explorar e conseguir mais maneiras de se locomover por este vasto mundo.

Todos os veículos têm gameplays que os tornam únicos e o tempo todo o jogo está te incentivando a torná-los mais únicos através de customizações funcionais e estéticas. Cada veículo é profundamente customizável em questões de peças, desde motores a armas a suspensões e etc., mas a grande beleza desse sistema vem de que a customização dessas peças não apenas te dá aquela satisfação de ver números crescendo e dar mais dano ou se movimentar mais rápido, toda mudança de peça reflete visualmente no seu veículo aumentando ainda mais o vislumbre e o apego ao ato de constantemente cuidar e renovar seus veículos.

Além desse sistema de customização mais funcional, o jogo também tem uma customização estética que te permite mudar as cores e encher seus veículos de figurinhas, o que honestamente? É simplesmente irado. Toriyama sempre foi conhecido por seus desenhos espetaculares de maquinário, e Sand Land não deixa a desejar nisso, todos os designs têm aquele ar característico do traço de Toriyama e não só são charmosos como todo o pensamento de design faz sentido do ponto de vista de engenharia na história daquele universo.

Normalmente, um tanque é projetado para ser mais baixo, tanto para torná-lo menos visível quanto para também dificultar atingi-lo. No entanto, no momento em que não houveram mais conflitos de grande escala, eles passaram a focar em tornar os tanques mais imponentes, aumentando sua estatura e enfatizando sua presença perante o público. Além disso, eles abriram mão da resistência, colocando grandes escotilhas em ambos os lados e etc. […]

Entrevista de Akira Toriyama no Kazeban de Sand Land (Agosto/2003)

Fora essa questão da customização dos veículos como um todo, os veículos são majoritariamente para combate e deslocamento pelo mapa. A parte de combate é incrível, de todos os veículos o mais emblemático (sem entrar em território de spoilers) é definitivamente o tanque, todo combate envolvendo ele te imerge no sentimento que o anime e mangá se esforçam tanto para passar das batalhas táticas militares; obviamente o jogo não se esforça para passar um controle absurdamente realista como um War Thunder da vida, mas ainda assim, ele te força a ficar consciente sobre seu posicionamento, a movimentação dos inimigos, o timing dos seus tiros, quantas balas você tem no pente e etc. É absurdamente divertido e satisfatório cada tiro e explosão usando seu tão amado tanque de combate.

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Nos aprofundando um pouco na questão da estória do jogo, Sand Land conta a história de um país que estava tão afundado em guerras civis que nem percebeu mudanças climáticas e geográficas trazidas pela própria guerra… anos depois desses conflitos, o povo agora enfrenta uma seca terrível que assola todo o país. Vale ressaltar que não são somente humanos que habitam Sand Land: demônios também rondam pelo país e moram juntos em um vilarejo, similarmente enfrentando as mazelas da seca e se vendo obrigados a atacar carregamentos de água do governo de tempos em tempos para sobreviver. Rao, o xerife de um pequeno vilarejo que já não recebe água da capital real de Sand Land, ao ficar sabendo que um demônio compartilhou água com uma criança que estava passando sede na estrada decide ir ao vilarejo dos demônios para fazer uma proposta.

Chegando lá ele conhece nosso protagonista, Beelzebub, o príncipe dos demônios, e explica seu plano. Todo ano, por volta dessa mesma época, o pássaro Water Flinch voa por aquelas regiões em direção ao Sul para sua temporada de acasalamento; durante esse período, o pássaro necessita se alimentar de um peixe que só é encontrado em corpos de água doce, e logo isso significa que mais ao Sul deve haver uma nascente de água sem ser da reserva real. Disposto a trair seu rei em prol de ajudar seus povos, o xerife Rao, o príncipe Beelzebub e o ladrão/conselheiro Thief saem juntos em jornada em busca dessa milagrosa fonte de água.

O jogo não perde muito tempo para introduzir esse conflito principal e elabora muito em cima dessa temática de ação popular: com o decorrer de sua jornada, Beelzebub vai conhecendo e fazendo novos aliados, como a mecânica misteriosa Ann que também se encontra em uma situação opositória ao governo de Sand Land. Apesar da estória honestamente não conter muitas reviravoltas, ela se mostra muito charmosa com suas interações de personagem e com sua construção de mundo, tanto nos trilhos principais da narrativa quanto em suas inúmeras side quests. Sério, é maravilhoso estar viajando pelos vastos desertos de Sand Land e ouvir o trio principal tendo conversas casuais entre si, troca de histórias, opiniões, conselhos e preocupações.  

Na questão de apresentação o jogo não deixa a desejar, considerando que essa não é a primeira vez que o estilo de Toriyama é traduzido para o 3D, levando em conta que a ILCA já havia trabalhado em Dragon Quest; nesse sentido, os gráficos parecem ser realmente apenas uma evolução natural do que a série DQ já havia trabalhado. Os modelos de personagens contém esse cell shading que valoriza suas características cartunescas e seus traços de caneta em suas texturas, com os mapas seguindo uma estética mais realista usufruindo bem das capacidades da Unreal Engine 5. Pessoalmente eu acredito que existe um balanço ok entre ambas as estéticas, mas entendo as críticas que apontam isso como algo destoante; também acho que seria mais interessante se todo o mapa pudesse ser mais estilizado, como os modelos de personagens e veículos, mas não chega a ser algo que verdadeiramente me incomodou. 

Agora o que honestamente foi surpreendente foi a questão da trilha sonora do jogo, que segue a mesma proposta que os jogos de mundo aberto tem abraçado recentemente, apresentando em sua maior parte do tempo trilhas sonoras ambientes com momentos melódicos introduzidos de forma pontual e “memorável”; entretanto, as tracks ambientes fazem uma mistura de elementos mais percussivos, pads eletrônicos, coros vocais liderando melodias suaves. Algumas faixas chegaram a me lembrar a OST de Hollow Knight, o que honestamente foi uma surpresa mais do que agradável!

Até o momento de escrita dessa análise ainda não tivemos o lançamento oficial da OST em nenhum meio oficial, mas assim que houver voltarei neste texto para colocar alguns exemplos que me agradaram.

Sand Land está disponível para PC, PS4, PS5 e no Xbox Series X e S. Os preços atualmente variam entre R$242,50 (a versão base na Steam) e R$349,50 (versão deluxe para Xbox). Se você está acostumado a pagar esse valor em títulos AAA eu posso garantir que o jogo não vai te decepcionar, ele tem muito conteúdo para ser aproveitado e quando bem explorado o jogo pode te dar umas 45~ horas de jogatina bem fácil; agora, se você não é muito fã de jogos focados em exploração ou com uso mais pesado de veículos, ou não está acostumado a pagar tanto em jogos, talvez de fato seja bom esperar uma futura promoção na faixa das 50% para pensar em dar uma chance.

A partir daqui no texto vou focar em falar da minha experiência pessoal e dar alguns spoilers mais pesados da estória, então se você pretende jogar e quer poder chegar a suas próprias conclusões recomendo que não siga com o restante da análise.

Uma cópia gratuita de Sand Land para PC foi concedida pela Bandai Namco para análise no Recanto do Dragão.

Refugiados climáticos, rebeldes e corpos dissidentes?

Simplificando a questão, eu acho que queria desenhar velhos, monstros e militaria. […] Para além dos monstros, estes são temas difíceis de se trabalhar em mangás shonen, mas eu quis muito testar minhas habilidades com esse tipo de história e mundo mais desolados. É o tipo de coisa que estive fazendo desde o fim de Dragon Ball.

Entrevista de Akira Toriyama no Kazeban de Sand Land (Agosto/2003)

Olhar para Sand Land em 2024 e saber que foi uma obra lançada em novembro de 2000 é meio assustador né? Vinte e quatro anos depois e nós parecemos ter virado a sátira que imita a ficção.

Enfim, antes de seguir com minhas interpretações que provavelmente vão um pouco além do esperado para o público alvo da obra, vou elaborar alguns pontos pessoais com o jogo.

Esse jogo foi algo que realmente testou meus limites com a questão de até onde um jogo deve ou não segurar a mão da sua audiência. Sério, no começo tiveram momentos que me davam legitimamente raiva porque parecia que o jogo simplesmente não esperava nada de mim, tudo tinha que ser me entregue de mão beijada, na minha cara o tempo todo, e olha que o jogo tem usos muito inteligentes com cores e com silhuetas no overworld.

Apesar de eu ter comentado sobre a yellow painting mais cedo, ela é usada de maneira muito natural levando em conta que muitos dos ambientes são bases militares, o que faz com que as pinturas não sejam destoantes do resto da ambientação; inclusive, mais tarde no jogo, a cor amarela passa a ser usada para representar caminhos alternativos dentro das dungeons e eu acho isso bem massa.

Agora traçando comparações entre anime e mangá, o jogo definitivamente possui suas forças, mas acaba caindo por terra em pontos muito específicos, tanto que na reta final do jogo eu senti que o anime foi feito quase como uma espécie de resposta a como o jogo lidou com o arco de Forest Land. Apesar de termos mais personagens nesse arco da estória em comparação com o anime, os poucos que vão para a adaptação animada acabam tendo mais destaque, apresentações mais profundas e arcos mais impactantes. 

Ann, por exemplo, apesar,de ser introduzida muito mais cedo no jogo e tornar o trio inicial um quarteto logo de cara, acaba sendo jogada para escanteio muito rápido e se fixando por completo em Spino como uma shopkeeper, diferente de Rao, Thief e Beelzebub que apenas usam a cidade como uma base de operações. Isso inclusive acaba até tornando o arco dela um pouco confuso e tirando parte do seu impacto como guerrilheira, diferente do anime onde ela vai para Sand Land com o único objetivo de impedir o governo de Forest Land de conseguir armamento militar mais poderoso. Muniel então? No jogo ele fica essa figura estranha porque eles tentam tornar o fato dele ser um anjo como um mistério por trás do personagem, e aí na maior parte tempo ele é só esse fedelho irritante e distante, enquanto na animação ele é introduzido logo de cara como um contraste total a Beelzebub, “anjo vs demônio”, “herói vs vilão”, “egocentrismo vs gentileza” e principalmente “totalitarismo vs liberdade“.

Ainda acho essa luta a parada mais hype da obra

Ainda assim, sinto que o jogo e anime são mídias complementares, ambas valem a pena ser consumidas, nenhuma sendo exatamente melhor ou pior que a outra. A primeira metade do anime é explorada de maneira maravilhosa no jogo, já que você realmente tem a sensação do quão vasto é o país de Sand Land, com casos cômicos, peculiares, tristes e etc. através das side quests que lotam o mapa. Enquanto a segunda metade no país de Forest Land é tão ampla quanto em questão de conteúdo, eu sinto que as temáticas dela são trabalhadas melhor na animação, tornando assim uma experiência satisfatória consumir ambas as formas de mídia da obra.

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Voltando ao ponto que soltei no primeiro parágrafo desta seção: consumir essa obra em um ano onde nosso país vem batendo recorde atrás de recorde de temperaturas máximas e nossos governos vem descendendo em uma espiral em direção ao autoritarismo/fascismo realmente nos faz questionar, o que estivemos fazendo nos últimos vinte anos para que um gibi japonês feito abertamente sem muitas pretensões seja tão assustadoramente atual?

Apesar de Toriyama nunca ter sido a figura mais política do mundo, fingir que Sand Land é só uma história com foco em questões ambientais beira o ridículo, não somente pelos conflitos obviamente políticos que movimentam as duas metades da história como também a quantidade de referências explícitas que Sand Land faz ao arco de Red Ribbon, que nada mais é do que uma crítica explícita ao autoritarismo feita da maneira mais lúdica possível que somente o Toriyama é capaz de fazer.

A grande questão é, quando eu olho pra Sand Land eu vejo muita coisa deixada nas entrelinhas, não somente você tem uma questão sobre um país onde sua população inteira é formada por refugiados climáticos, mas também vê muitas analogias que vão desde corpos dissidentes à relacionamentos interraciais e até possivelmente colônias anarquistas.

Na questão de corpos dissidentes eu observo isso muito ilustrado no conflito de demônios vs humanos como uma possível analogia à corpos dissidentes e o status quo, não chega a ser uma leitura muito forte mas é algo que eu gosto de pensar sobre, e isso acaba tangenciando para a questão de relacionamentos interraciais levando ao twist do arco da Ann dela ser filha de um homem com um demônio. Essas entrelinhas não são exatamente fortes, mas tem pontinhos aqui e ali que levam a isso (como por exemplo Ann ter a questão dos dreads como um ponto tão característico do design dela). Agora sobre a questão de colônias anarquistas eu não preciso falar muito sobre já que Spino é bem óbvia nesse sentido, uma ex base rebelde que foi abandonada pelo estado e precisa se reconstruir através do coletivismo da sua população sem ajuda algum da pátria na qual reside, com trocas e monumentos levantadas todas pelo poder popular.

Mas como sempre, no fim do dia esses últimos parágrafos são interpretações pessoais e íntimas minhas, então sinta-se livre para sempre consumir a obra e discordar caso se sinta inclinado a fazer!