ESCREVER SOBRE SHUTEN ORDER
Com receio, encaro a penosa tarefa de escrever uma análise sobre Shuten Order. Quando digo penosa tarefa, não é porque eu não tenha gostado do jogo — se me permitem pelo menos um pequeno único spoiler: na verdade, amei. É que estamos diante de um mistério recheado de enganos e misdirections, e a minha vontade é que, ao jogar, você se sinta tão desorientado quanto me senti. Me vejo, então, naquelas situações onde começo a contar uma fofoca para um amigo, porém logo me dou conta que não sei até que parte ele pode saber e, quando ele levanta um questionamento capaz de levar a conversa a esse terreno dúbio, recuo feito alguém que dá um pequeno tropeço ao andar para trás — e, com esse gesto tagarela, já confessei. Felizmente, aqui, você é leitor, não amigo; por isso posso dizer somente o necessário sem medo de réplicas inconvenientes. Mas, se for amigo (daqueles que confiam em mim, pelo menos), talvez o necessário já tenha sido dito com a palavra acima grifada em negrito e sinta-se livre para fechar a aba e deixar de ser leitor.
Prossigamos: leitor, ou amigo que não confia em mim, ou amigo que confia até demais em mim ao ponto de crer que ler esse texto pode ajudar na sua experiência — e quarta personagem secreta que já jogou o jogo.
SOBRE KODAKA E NAKAZAWA
Shuten Order é uma visual novel desenvolvida pela Too Kyo Games em colaboração com a DMM Games e publicada no ocidente pela Spike Chunsoft. De anúncio repentino, os principais atrativos mencionados em seu anúncio foram o envolvimento de Kazutaka Kodada, criador da popular franquia Danganronpa, e a sua mescla de gêneros de videogame com cada rota tendo a própria identidade como se fossem cinco jogos diferentes. Um feito impressionante se considerarmos que Kodaka lançou The Hundred Line em abril desse mesmo ano, lotando diversos portais sobre “o jogo com 100 finais.”
Agora lançado, dá para entender um pouco de como isso foi possível. Não, o jogo não é curto, nem de longe; posso até adiantar que para finalizar todas suas cinco rotas são precisas pelo menos 40 horas. Contudo, ao terminar e ir ao créditos, conseguimos ter noção de qual foi a extensão do envolvimento de Kodaka: muito semelhante com o caso de Kotaro Uchikoshi no recente No Sleep For Kaname Date, o escritor teve seu envolvimento principal no planejamento e supervisão da narrativa, com a diferença de que chegou a escrever alguns momentos da história. Assim, a maior parte do trabalho de escrita ficou por conta dos outros dois nomes anunciados: Takekuni Kitayama e Takumi Kanazawa — este último responsável também pela direção.
Não é de se surpreender que Kanazawa tenha sido escolhido para essas funções. Pois, desde o início, seu trabalho de direção e escrita está intimamente ligado com a história das visual novels de ficção científica por ter trabalhado na série Infinity, conhecida por experimentar com o gênero. Inclusive, faz sentido que a Spike Chunsoft tenha esse ano trazido remasterizações dos dois primeiros jogos dessa franquia, ambas as quais escrevi análises aqui no site, o que traz a real surpresa: ter sido o terceiro trabalho do diretor que escrevi esse ano — tá… segundo e meio porque a versão do Ever 17 foi baseada no remake de Xbox 360 sem o envolvimento de Nakazawa.
ENFIM, REI SHIMOBE, SHUTEN ORDER E OS CINCO MINISTROS

Começamos num quarto de hotel, onde nossa personagem se encontra perdida e sem memórias. Logo surgem duas figuras autoproclamadas anjos — aceitamos serem mesmo por causa das asas, auréola e capacidade de flutuar ligeiramente — chamadas Himeru e Mikotoru com a missão de nos informar que a protagonista morreu e precisa descobrir seu assassino. Na verdade, é um pouco mais que isso… A protagonista morreu; e era a fundadora da pequena cidade-estado em que estamos, Shuten; era chefe do grupo religioso que controlava a cidade e reza pelo fim do mundo, Shuten Order; era divindade adorada por parte dos cidadãos; era comandante de cinco ministros que a ajudavam a governar. Agora está morta, mas revivida pelo “Poder de Deus” para encontrar seu assassino, fazê-lo confessar e matá-lo como parte de um ritual para retomar seu corpo e memória originais. Tudo dentro de quatro dias, porque é o tempo de duração de seu corpo temporário.

Enquanto isso não acontece, ela é só Rei Shimobe, detetive particular, vestida de uma máscara para não a reconhecerem. Quem são os principais suspeitos? Seus cinco ministros; cada um, ao encontrar seu corpo mutilado na praça central da cidade, levou uma parte — braço direito, braço esquerdo, perna direita, perna esquerda e cabeça — sobrando só o torso que nunca foi encontrado. Não sobrou para ela nem a memória… era a pessoa que mais sabia sobre os segredos da cidade. Contudo, agora ela é o exato oposto.
Como, então, uma ninguém poderia investigar os maiores figurões da cidade? Não só porque, normalmente, as habilidades de um detetive vão além do poder dedutivo, e incluem uma acumulação de conhecimento bruto essencial para chegar à verdade; mas também em razão da discrepância de suas posições sociais, algo que considerei de início, em parte por estar com o interessante texto do Dentro da Chaminé sobre a Maomao (Diários de uma Apotecária) enquanto detetive-serva . A resposta foi mais simples do que imaginei, pois há um conhecimento que só ela compartilha com os ministros: a morte da fundadora, já que o caso foi abafado para evitar apavoro da população. Isso, um pouco de carisma e o tal Poder de Deus que a ressuscitou.

Tal poder a concede habilidades convenientes durante a história, mas que também trazem todo um conjunto novo de problemas. De quem é o Poder? De Deus. Porém, quem é o verdadeiro Deus nessa cidade senão a própria fundadora? Descobrimos, assim, que esse poder é, na realidade, um grande tabu naquela sociedade que considera “Deus” um inimigo e que rezam pelo fim do mundo criado por Ele. Por toda cidade, estão espalhadas telas que contam quanto falta para o fim do mundo. Seus maiores inimigos são aqueles que se opõem a isso.
Daí já surge todo o emaranhado de informações conflituosas que compõem a atmosfera desorientante do jogo que, quando você acha que entendeu algo, tem o tapete puxado violentamente. Como isso se desenrola pode variar bastante já que somos livres para escolher a ordem em que jogamos as rotas — e sim, é necessário terminar todas para finalizar o jogo. Embora, em vários momentos, me peguei pensando se seria mais “fácil” se tivesse feito os caminhos em outra ordem, por isso estou ansioso para saber as diferentes formas que as pessoas interagirão com a história depois de seu lançamento.

As cinco rotas consistem em investigar cada um dos possíveis assassinos: Kishimiru Inugami, Ministro da Justiça, em um mistério de detetive ao investigar uma divisão de herança; Yugen Ushitora, Ministro da Saúde, em um death game sádico no espaço; Teko Ion, em uma aventura pelo seu laboratório subterrâneo; Honoka Kokushikan, em um dating sim com suas irmãs excêntricas; Manji Fushicho, em diversas sessões de perseguição e furtividade com um serial killer monstruoso. Cada uma dessas rotas, como mencionado, tem sua própria jogabilidade que dá novas perspectivas ao jogo.
Importante ressaltar a qualidade que a trilha sonora de Masafumi Takada tem ao navegar pelos diferentes flavors de cada rota com a empolgação característica dos seus trabalhos nos outros jogos do Kodaka. E, mencionando por último, mas que foi o que mais me encantou desde o início: a direção de arte e ilustrações de simadoriru que já havia chamado minha atenção nos trailers, mas, quando saí do hotel, entrei no táxi e a câmera abriu pela primeira vez, enfim senti que estava apaixonado. Pelas próximas dezenas de horas, parava, de tempo em tempo, e repetia em voz alta o quão bonito era aquele trabalho.

Foi nesse encanto que continuei mesmo nos momentos mais fracos da narrativa, onde senti que os acontecimentos dentro de algumas rotas se tornaram previsíveis até demais — e talvez fosse até a ideia para deixar as misdirections mais efetivas. Se eu puder encontrar um defeito “real’ para apontar, provavelmente seria o estado confuso que a tradução me deixou — e que provavelmente não era intencional. Pois, como pode ser visto ao olhar o design da protagonista, ela tem uma aparência masculina. Isso é um ponto importante em diversos momentos da narrativa, porque a maioria dos personagens a trata no masculino e, quando descobrem que ela se considera mulher, trocam para o feminino; mas há algumas discrepâncias estranhas na tradução para o inglês.
Há muito que ainda gostaria de escrever, principalmente sobre as temáticas em jogo. Talvez até faça isso um dia, onde disseco mais detidamente cada uma das rotas e seus desenrolos para, enfim, culminar na conclusão da narrativa. Por enquanto, só peço que acredite em mim: há muito mais do que se pode ver num olhar superficial e a riqueza de abordagens já vale a experiência. Se posso dizer mais algo, é só que anseio pelo próximo presente que os talentos reunidos na Too Kyo Games (como Kodaka, Uchikoshi, Nakazawa, Takada e simadoriru) nos entregarão — mesmo que ainda esteja devendo terminar o gigantesco The Hundred Line.
Uma cópia de SHUTEN ORDER para Nintendo Switch foi concedida pela Spike Chunsoft para análise no Recanto do Dragão.