“Recentemente têm mais e mais jogos ditos como ‘horror’, mas eu pessoalmente acredito que o gênero horror e o desenvolvimento de jogos AAA não se dão bem juntos“ — Keiichiro Toyama
A indústria de videogames vem passando por longos percalços ao decorrer dos anos. Pode parecer esquisito como uma indústria em ascensão pode também ser decadente, com insegurança trabalhista, jogos de grande porte cada vez mais pasteurizados e diversas apostas seguras em remasters/remakes fazem que desenvolvedores e publishers criem e sigam um padrão.
Tem sido cada vez mais difícil ver jogos de médio orçamento (ou AA, se preferirem) que brinquem com convenções, temas ou tendências no mercado. Isso tem sido reservado aos jogo independentes em algum nível, mas não é necessariamente a mesma coisa. Sempre vi jogos AA sendo a grande (se formos fazer comparações com a televisão) ‘Malhação’ dos videogames, uma área onde testar era o normal, errar era rotina, mas tudo era em prol de movimentar a arte em busca de fomentar novos conceitos.
Mas dá para entender os pormenores dessa situação. A indústria passa pelo mesmo processo que o cinema passou a princípio — desde a popularização, crise e gentrificação, mas principalmente industrialização. Produções cada vez mais caras e aceleradas que não dão espaço para movimentos artísticos, deixam trabalhadores exauridos e o preço final ainda mais caro para o cliente. A prova cabal do que digo está, por exemplo, na empresa que por anos financiou Yoko Taro com Drakengard, Nier e Voice of Cards (veja, franquias despidas de — quase- qualquer padrão) mudará o foco de produção para apenas projetos de grande porte.
Para ficar claro, eu digo que dentro do mainstream com o passar dos anos, se foi fomentando esse não espaço para jogos de médio orçamento ou que arriscam tudo em uma ideia maluca. Desde que me formei em Jogos Digitais eu venho buscando cada vez mais exemplos que nadem contra a maré (mesmo que ainda usem certos apoios) dando chance para todo e qualquer tipo de jogo. O meu próximo jogo favorito pode estar por aí, em algum lugar, por de trás de notas amarelas ou avaliações negativas mal intencionadas.
Mas, como uma brisa fria no verão, Slitterhead aparece nesse cenário.
Desenvolvido pela Bokeh Game Studios, Slitterhead é o novo projeto de Keiichiro Toyama — uma das mentes por trás de Silent Hill e Siren — que conta com ação, aventura e leves pitadas de terror. Nessa analise te direi por quê acredito que esse é um dos jogos mais importantes desse ano.
A premissa de Slitterhaead é instigante desde o primeiro minuto: você não controla um personagem principal — ao menos, não de carne e osso — você se depara com Hyoki, um ser que vaga nessa terra controlando animais e humanos para que possam lutar contra os Cabeças Rasgadas, monstros que estão por aí dentro da sociedade fazendo inúmeras vitimas e tramando algo maior.
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Isso nos leva ao momento-a-momento do jogo, que sim, o Hyoki eventualmente irá encontrar personagens que tem habilidades diferentes chamados de Raridade. Mas o grosso do jogo vai girar em torno da ideia de você controlar pessoas comuns contra esses monstros gigantes e sedentos por sangue. E bem, o combate vai ser lento, ele não funciona na maior parte do tempo… em dificuldades mais altas a inteligência artificial dos inimigos não vai dar tempo suficiente para a reação. E parece perturbador, né? Mas o jogo está focado te fazer usar todas essas pessoas ao redor do monstro, já que elas não têm habilidades para lidar com eles. Você deve fazer o possível para trocar entre os personagens, chamar a atenção do inimigo, e buscar uma oportunidade de ataque.
E mesmo que a pura quantidade contra força não seja suficiente, a estrutura de missões de Slitterhead permite que você escolha entre as diversas Raridades que o jogo vai desbloqueando com o tempo, e Raridades essas que possuem estilos de jogos diferentes. Desde personagens mais agressivos usando força bruta até alguns mais defensivos com até direito a torretas de sangue. Mas falando nas raridades, é importante comentar sobre a narrativa do jogo.
Mesmo sem um personagem principal bem definido, as Raridades em foco serão Alex e Julee, que entram nessa história como aliados, mesmo que seus objetivos divirjam. Tendo sua história contada majoritariamente através de diálogos fora das missões e lembranças — coletadas nas missões — o jogo possui uma progressão anômala, que se estende demais. Em parte por termos que repetir diversas vezes uma fase, em parte por entrarmos em loops diferentes de uma mesma sessão. Isso faz a história escorrer entre os dedos a deixa confusa com o tempo.
E é engraçado como o jogo bebe de diversas fontes, desde as mais óbvias como os próprios monstros serem semelhantes aos Yaoguai (ou meio Tokyo Ghoul em conceito), a reutilização de Sightjacking de Siren e até o longa Fallen Angel (1995) do Wong Kar-Wai entra nessa equação. É essa amálgama de referências que fazem que Slitterhead seja não apenas uma reinterpretação de um possível Siren 3, mas um sinal de que o videogame está aberto a novas possibilidades.
No fim, Slitterhead é uma experiência engraçada. Assim como é interessante, é frustrante na mesma medida, mas entrega um charme que talvez seja mais entendido no futuro; seria o nascimento de um novo clássico cult? Só o tempo nos dirá.
São jogos como Wanted: Dead, Deadly Premonition ou Pathologic que movimentam o meu crescente interesse pela mídia. Jogos quebrados, às vezes com desempenho ruim, mas que querem dizer algo, seja estético, narrativo ou que apenas tenha uma mecânica legal.
Mas sendo sincero, acredito que Slitterhead seja importante não por ser vanguarda em algo, por ser hiper-inventivo ou revolucionário, eu acho ele importante por ser um AA mainstream que remete ao que videogame foi há um tempo.
Recentemente, em uma entrevista para o portal japonês Denfaminicogamer, Toyama fala que Slitterhead nasceu da ideia de um possível Siren 3, quando a Sony Interactive Entertraiment mostrou interesse em ter um jogo AAA de Toyama em seu catálogo. O projeto não foi para frente, mas o que Toyama demonstra é uma falta de interesse em projetos de grande orçamento. E particularmente? Acho que prefiro assim.
Slitterhead é o jogo mais interessante do ano para mim, mas entendo também que o achem intragável, o mercado mainstream sempre ditou as “boas convenções” para um videogame, e esses jogos que mexem um pouco naquilo que se acredita ser “certo” podem ser rechaçados em algum nível. Termino esse texto não em busca de um culpado por fazer que as pessoas gostem do que gostam, ou coisa do tipo, mas quase em tom de apelo: dê uma chance aos patinhos feios, talvez eles tenham algo a dizer.