Uma série de atitudes inconsequentes assolaram meus últimos anos, atitudes estas que me incentivaram a adotar um estilo de vida praticamente inerte com relação ao que era no passado. Isso me impediu de experimentar novas iniciativas e tomar atitudes ousadas, mas também me desestimulou de persistir com rotinas mais básicas como ir ao cinema e visitar exposições; enfim, experienciar arte.
Refleti e refleti, postergando a vontade de visitar a exposição de arte de Yoshitaka Amano no Farol Santander (que hoje, no momento em que escrevo este texto, chega ao seu último dia). A exposição singular de um artista cuja influência internacional finalmente pôde ser apreciada na América Latina de perto, pela primeira vez. Uma experiência que, por medo, preguiça, vergonha, ou seja lá o que for, eu quase perdi.
Fui visitar o catálogo online da exposição, onde todos os textos e artes podem ser vistos, e então me caiu a ficha: arte não serve apenas para ser escaneada com os olhos, dando e tirando zoom, salvando para colocar de papel de parede, mas serve para ser “experienciada“. Seu papel fundamental se perde à medida que a arte original é convertida em mais e mais veículos midiáticos, sedimentando a experiência em novas experiências que já não são mais tão fiéis à sua manifestação original.
Tomei coragem e fui visitar a exposição em seus últimos momentos, digerindo à força aquela máxima do “antes tarde do que morto”, sabendo que iria me arrepender amargamente de deixar mais uma oportunidade única ir embora na vida. Agora, parado de pé na entrada do salão do vigésimo terceiro andar, onde estão expostas suas artes dedicadas à franquia Final Fantasy, lhes escrevo este texto.
Graças a hoje, entendo melhor agora a conexão que a arte promove na humanidade.
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A arte como um meio de expressão imperfeito, profundamente pessoal e absolutamente irreprodutível por outros seres, evoca e se origina em uma série de sentimentos impossíveis de serem puramente compreendidos. Quando me entrego, sinto um vínculo invisível que se fortalece a cada passo dentro da exposição, um sentimento de conexão com a alma do artista… que apenas se estende até onde minha própria alma é capaz de interpretar essa arte. Uma versão semelhante, mas mais sofisticada da conexão que sinto ao ir num show e ver que centenas de milhares de pessoas ao meu redor sabem as mesmas letras, os mesmos ritmos, batidas e timbres, com o diferencial desse sentimento ser compartilhado unicamente entre mim e o artista.
A arte nos nutre com uma série de elementos imperfeitos, detalhes imperceptíveis, influências invisíveis que podemos ou não capturar, intenções que vão ou não ser assimiladas, momentos que irão ou não nos impactar por muito, muito tempo. Fragmentos subjetivos que estimulam cadeias associativas das mais diversas, evocam sentimentos e disparam emoções igualmente irreprodutíveis, experiências inigualáveis assim como as obras das quais se originaram.
A arte de Yoshitaka Amano me fez refletir sobre o cavaleirismo e os papéis de gênero, seu medievalismo fantástico dotado de um onirismo incapturável, fluído, em quadros repletos de movimento. Expressões faciais sobrecarregadas de emoções extraordinárias, corpos delicados como bailarinos feitos de porcelana, e finalmente guerreiros adornados com vestimentas exuberantes e complexas, brincos e medalhões, metros e metros de tecido esvoaçante. Suas artes, reproduzidas com técnicas que a mim são irreconhecíveis, guarnecidas de respingos dourados e tinta refletiva, camadas sobrepostas de guache sobre finas linhas de papel texturizado.
É nessa frustração, germinada por um processo interpretativo incompleto e imperfeito, que floresce a conexão entre o observador e o artista. Na nossa incapacidade de substancialmente compreendermos as autênticas intenções, mensagens e influências das obras. A humanidade da arte reside na fronteira entre as coisas que nos fazem sentido e os detalhes que nos escapam, aqueles que somos incapazes de interpretar sozinhos. É isso que a arte nos ensina, é aí onde reside o valor de ser humano: o que reside dentro de cada um de nós é único, impossível de ser genuinamente desconstruído.
Friedrich Nietzsche uma vez afirmou que “não existem fatos eternos, assim como não existem verdades absolutas; apenas interpretações“. Ludwig Wittgenstein se alimenta desse perspectivismo quando também afirma que “os limites da linguagem são os limites de minha realidade“. Pois bem, foi hoje o dia em que aprendi o valor das nossas capacidades interpretativas, pois, assim como é na arte que nossa humanidade se manifesta, é através da interpretação dela que nós nos conectamos: de forma imperfeita, eternamente incompleta.
Nós somos o que enxergamos do mundo. Nossa alma é a semiose que somos capazes de capturar, assim como as simbologias que inevitavelmente nos escaparão. Ser humano é ser um quebra-cabeça irresolúvel, e a tentativa de nos conectarmos está fadada a, “eternamente”, se resumir a uma miríade de interpretações inacabadas.