Fantasian: Neo Dimension — esqueço e ando | Análise (Parte 1)

Fantasian Neo Dimension — esqueço e ando Análise (Parte 1)

Em abril de 2021, pudemos ver o que seria o primeiro JRPG em 10 anos do estúdio Mistwalker, fundado pelo exímio Hironobu Sakaguchi, responsável pela tão imensa franquia Final Fantasy. Quer dizer, alguns puderam. Ele havia lançado em duas partes exclusivamente pelo sistema de assinatura Apple Arcade, e assim só podia ser acessado por dispositivos móveis da empresa.

Os fãs de Sakaguchi que puderam jogar fizeram a festa mas, especialmente num país onde Iphones e Icoisas são menos acessíveis como o Brasil, muitos apenas puderam imaginar o que seria desse jogo. Esse não é mais o caso, pois Sakaguchi conseguiu apoio da Square Enix para portar Fantasian para consoles e PC! Assim, o recentemente subtitulado Fantasian: Neo Dimension chegou ao PC, Playstation 4, 5, Nintendo Switch e Xbox Series S|X em 5 de dezembro.

Nota: Pelo interesse de pontualidade e respeito à estrutura, este texto é dividido em duas partes. Esta que você lê neste momento cobre o jogo até a luta contra o chefe Chaos Serpent, que marcou o fim da primeira parte no lançamento original de IOS. Em alguns dias, esta análise será atualizada com a cobertura da parte 2 de Fantasian. Agradeço a compreensão!

Nota²: Como a única dificuldade disponível na versão original era o que agora é considerado o modo “difícil”, esta jogatina foi feita nesta dificuldade para representar melhor a experiência original. Mas não se sinta triste se preferir jogar no normal! Fantasian não é um jogo tão fácil.

Que dor de cabeça!

O legado dos JRPGs da Mistwalker é alvo de mistificação entre os fãs de Final Fantasy — muitos sabem da existência de seus jogos de alto orçamento da sétima geração como Lost Odyssey, Blue Dragon e The Last Story mas, como eles não venderam tanto, eles ainda estão perdidos ao tempo. Sim, essa é a minha maneira de explicar que não fiz a lição de casa de centenas de horas antes de começar Fantasian como minha primeira experiência do estúdio.

Inclusive, eu também era uma dessas pessoas clamando pelo lançamento de Fantasian em outras plataformas. Amo os primeiros três Final Fantasy de coração, por mais que apenas tenha jogado as versões Pixel Remaster e 3D remake deles. Eles exuberam uma ambição enorme narrativa e estrutural enquanto ainda seguem as convenções do gênero até então estabelecidas por jogos como Dragon Quest.

Parte do apelo de Fantasian está em seu pedigree. Ele é encabeçado por Sakaguchi e esbanja composições de Nobuo Uematsu (outro importado de Final Fantasy) em sua trilha, possui grana da Apple envolvida em seu orçamento e resolve, ainda assim, se manter tradicional da forma mais espaguete possível. O combate é completamente em turno, sem sistema de ATB, como nos Final Fantasy de Nintendinho; a narrativa é uma força constante, mas ainda reservada, como em JRPGs de PS2; e suas dungeons e cenários são pré-renderizados em contraste com os personagens 3D, como em JRPGs de PS1 — ah, e eles são todos construídos amorosamente com maquetes de tirar o fôlego.

Fantasian: Neo Dimension análise

Desde os locais extremamente detalhados como o oeste da capital Vibra até a esparsa Ancient Hill, que parece ter sido fotografada com o frescor de sua construção ainda evidente. O estilo escolhido para suas folhagens em seu planalto destacável difere de outras áreas florestais. Elas estão todas afuniladas em arbustos densos que parecem ínfimos quando contrastados com o protagonista Leo caminhando por eles. De resto, pequeninas rochas são decoradas com escadas e pontes, e uma grama rasa cuida do resto. É muito lindo!

O mesmo vale para todos os outros locais. O estilo visual de Fantasian não possui vergonha alguma de ser remetente ao fim dos anos 90. Personagens 3D são transpostos num mapeamento da imagem bidimensional pela qual caminham felizes, e a imensa qualidade das imagens faz com que a ilusão quase nunca seja quebrada. Os efeitos visuais de partículas e depth of field também ajudam. Mas, como esse é um estilo custoso para um jogo sem um grande orçamento, Fantasian busca aproveitar e reaproveitar estes locais o máximo possível.

Existe bastante repetição nas áreas. Três cidades principais, alguns locais únicos e uma boa quantia de dungeons. Mas, durante as minhas 25 horas na primeira parte, tive que revisitar elas muitas, mas muitas vezes. Claro, isso não é um problema por si só! Mas a estrutura da narrativa não ajuda, nem no momento-a-momento e nem tematicamente.

Fantasian: Neo Dimension análise

Leo perdeu suas memórias. Clássica história de amnésia. Ele estava em uma missão importante, em um mundo futurista não muito diferente de alguns Final Fantasy do VII pra frente. Ele foi parar com um teleporte em uma cidade de seu universo natal, que é um mundo de fantasia medieval não muito diferente dos primeiros Final Fantasy. Hmmm, eu sei o que você quis fazer, senhor Sakaguchi.

Em pouco tempo, Leo descobre que o mundo de fantasia está sendo corrompido pelo futurista, em termos simplificados. Bolas bacterianas cibernéticas intituladas Mechteria invadem cada uma das maiores cidades do planeta, destroem seus arredores e sugam as emoções de seus habitantes. Na cidade de En, onde Leo foi parar, o norte já está corrompido.

Resumindo: esse conceito é muito, muito interessante. Ver uma das pessoas mais influentes e experientes do cânone dos videogames reexaminar suas obras passadas com esta metáfora é um privilégio. Pena que, ao menos na primeira parte de Fantasian, estes conceitos se perdem no terceiro plano. Além do elemento estético, nenhum destes conceitos ainda foi explorado. Os moradores das cidades afetadas não parecem muito desesperados pela Mechteria. Uma justificativa da narrativa pra isso é que ela suga as emoções das pessoas… mas muitas delas exibem emoções constantemente! Só não muito em relação à Mechteria. O tom tradicional felizardo de JRPG não mescla nada bem com a calamidade sugadora de emoções…

Fantasian: Neo Dimension análise

O foco então está nos personagens, que são em muito remetentes ao elenco de Final Fantasy VII. Tem um Cloud, uma Tifa, uma Aerith, um carinha tipo Yuffie, um cara um pouco Barrett… não é uma comparação perfeita e não é algo ruim, mas fica meio deprimente ver a escrita tão sem sal desse jogo até se comparada ao roteiro da tradução original ao inglês de FFVII. 

A Kina é bem reservada e meio canina, a Cheryl é uma tsundere direta, Zinikr é um velho tarado de merda, o Ez é a Yuffie da cabeça aos pés, por aí vai. Eles não quebram o esperado de seus personagens, e o Leo com amnésia não tem uma opinião forte sobre nada além da busca por suas memórias e o paradeiro de seus pais.

Essa dinâmica entre a party acaba ficando seca, especialmente pois muito dela depende do triângulo amoroso entre Leo, Kina e Cheryl. O que complica o relacionamento é que, assim que Cheryl aparece, ela rouba a cena tanto que obscurece qualquer interação com a Kina, e as duas já são muito rasas! Não ajuda que a party completa nunca se junta na primeira parte, então cada personagem tem poucos outros membros do elenco para interagir e se expressarem. De três em três party members, a primeira parte de Fantasian vai perdendo o charme até se esvair com o último trio.

Ao menos nas batalhas as dinâmicas fluem melhor — aqui despidas de qualquer resquício do estilo ATB que dominou alguns dos Final Fantasy mais populares por tanto tempo. Você luta em turnos e posiciona seus ataques dinamicamente, podendo até curvar ataques mágicos e alguns de longa distância. Seus feitiços de cura e buffs só podem ser usados em batalhas, então manter um bom estoque de itens pós-luta também é útil. Pera, no meio da luta também, pensando bem.

Ez é, mecanicamente, um personagem muito divertido de jogar! Ele só tem barra de magia pra doar ela pra seus companheiros, pois luta criando habilidades ao usar itens do seu inventário. Aqueles itens que ficam pra sempre esperando pra ser usados agora possuem usos variados e engajantes, como bombas criadas com itens que curam status effects e essências de mana. É muito bom, e representa bem a filosofia de combate do jogo.

A regra em Fantasian é o utilitarianismo. Perfeito pra quem gosta do aspecto mais puzzle em JRPGs (como a minha grande amiga Rosie), onde cada batalha única pode ser resolvida de formas criativas com habilidades e fraquezas elementais. O mesmo vale para chefes. Eu sou mais da escola Dragon Quest onde tudo é resolvido no grind cru e batendo cabeça, mas felizmente minhas preces também foram ouvidas!

Leo consegue múltiplos dispositivos futuristas que ajudam muito sua vida de protagonista, como um aparelho que o permite fazer fast travel pra qualquer lugar que possua memória de ter passado, e um coiso chamado Dimengeon. Seu uso também é mecânico, mas bem menos plausível e mais abstrato: coletar encontros aleatórios de inimigos para lutar contra todos de uma vez só.

Isso não diminui a taxa de encontros, só adia o problema e te ajuda a mirar feitiços e ataques perfurantes em mais bixinhos de uma vez só. Ao meu ver, seu intuito é controlar seu ritmo como um jogo portátil de celular; você pode passar de um ponto de save para outro “stackando” inimigos sem lutar uma vez sequer, terminar sua sessão e voltar depois quando tiver tempo pra enfrentar uns 30 ou 40 de uma vez. Você dita a duração de suas batalhas, e desta maneira uma sessão de Fantasian pode ter a duração que você quiser. Essa mecânica ainda funciona bem numa experiência de mesa!

Fantasian: Neo Dimension análise

Mas ele não é perfeito… como mencionei, também gosto até quando JRPGs são menos focados em puzzles de combate e mais em grind e gerenciamento de recursos à longo prazo, mas o Dimengeon torna essa experiência desigual. As lutas iniciadas por ele utilizam sempre o mesmo plano de fundo que parece a tela inicial do PS2, a mesma música e seguem o mesmo ritmo. Os inimigos aparecem de pouco em pouco com formações bagunçadas e a ordem de seus turnos muito distante, a ponto de facilitar a luta até demais. O pior é que o Dimengeon ainda te oferece constantes buffs de ataque e turnos extras gratuitos!!! Vale muito mais a pena fazer qualquer luta, mesmo que seja pequena, pelo Dimengeon.

Isso tira completamente o senso de lugar das batalhas individuais que, sem o uso do dispositivo, te apresentam cenários únicos com formações inimigas desafiante e pensadas, além de temas diferentes de batalha. Ou tema, no singular, sei lá. Não presto tanta atenção em trilhas de batalha. Pelo menos, ao enfrentar um inimigo inédito ou um chefe, o jogo te obriga a ter uma luta normal pra ao menos dar uma olhada em como seria uma batalha dentro da dungeon.

A forma mais eficiente de usar o Dimengeon como uma ferramenta de grind é lotá-lo de inimigos, teleportar para uma pousada, e enfrentar eles lá para poder se curar logo depois. Dependendo da eficiência de seu grind, você pode aproveitar as curas grátis vindas ao subir de nível, ou até só se lotar de poções para a ocasião. Nem tem tanto equipamento pra comprar no jogo mesmo.

Pra mim, essa é uma forma de fazer streamlining na grande arte do grind à ponto de expor a futilidade do ato. O posicionamento de Leo naquele mundo pouco importa, considerando a abundância de pontos de fast travel. As batalhas individuais, até quando lutadas em áreas novas com o propósito de progredir, perdem seu significado imediatamente com o uso do Dimengeon. Eu… gosto dele, mas sinto que é uma papinha amorfa pra suprir jogadores do meu estilo enquanto os fãs do estilo Chrono Trigger aproveitam o resto do combate mais puzzle, que é bem fofinho.

Fantasian: Neo Dimension análise

Os chefes, em sua maioria, possuem ambas soluções otimizadas e baseadas em força bruta. Um bom exemplo é a luta num penhasco da Ancient Hill contra Lyranodon, que chama pequenos bixinhos voadores para o eletrocutar a cada turno. Ao ser eletrocutado quatro vezes, ele usa um ataque devastador que joga sua party inteira para trás. Se tomar este ataque três vezes, você é jogado do penhasco e morre. É possível ir na força bruta (e bem grindado) tentando eliminar os pequenos monstros com bombas do Ez enquanto lasca a porrada no Lyranodon. Com uma boa otimização, níveis e sorte você o mata antes de ser empurrado. Alternativamente, você pode fazer o tanque Zinikr provocar todos na arena e assim impedir o chefe de sequer ganhar uma carga de eletricidade. Só é triste saber que o jogo basicamente te entrega essa solução de mão beijada caso você perca tentando a primeira estratégia.

A primeira parte é bem linear, então não existe tanta customização além disso. Você só ganha acesso a uma árvore de habilidades no finalzinho dela… e só pro Leo, por enquanto. Mas, ainda assim, considero essa uma boa troca pra esse estilo de JRPG. Ambos tipos de jogadores saem com suas próprias interpretações do design. A customização de estilo de jogo está em como ele te deixa explorar também a “solução burra” de seus problemas, e não na abertura de seu design e setpieces! Maravilhoso.

Fantasian: Neo Dimension análise

A primeira parte de Fantasian vai e vem com inúmeros altos e baixos, mas ainda me dá uma esperança pra segunda, que é mais aberta. A única coisa que ainda me entristece é a narrativa, que recebe um foco enorme pro quão desinteressante é. Sim, o foco está em personagens simples em uma busca por memórias e à salvação do(s) universo(s), mas isso não significa que ela era pra ser tão sem graça!

Leo, como muitos outros protagonistas misteriosos amnésicos, deixou pistas para seu novo eu perdido. Ele possuía múltiplas bases pelo mundo intituladas “Toy Boxes”, que estão rodeadas de pistas. Pode apostar que toda hora que você chegar em uma Toy Box, o ritmo do jogo irá desacelerar intensamente. 

Isso pra te narrar, em cenas no formato de historieta à la Lost Odyssey, flashbacks sobre a pobre coitada da rainha vítima de uma revolução ou alguma outra besteira (é meio assustador o quão monarquista esse jogo é, inclusive — mais até do que a abstração do sistema demonstrada em Final Fantasy e Dragon Quest, por exemplo). Corta pros protagonistas reagindo. Corta de novo pro flashback. Conversa curta sobre o fato . O que vamos fazer agora? Ah, anotado. Tudo daquele jeitinho bem lentão sem animações bespoke. Por aí vai; o pior é quando pequenas idas e vindas de gameplay são esmaltadas junto disso. A Midi Toy Box da cidade de Vibra é muito culpada disso, com sua piadoca sobre sistemas redundantes de segurança se estendendo à picotada de informações que você recebe do local.

"Estamos aqui para escurecer o futuro de Vibra. Sequestramos sua princesa sem nome, ela que causará caos ao reinado. Demandamos o término da linha sanguínea da realeza e a transferência completa de poder ao povo." Vibra, que havia acabado de terminar as celebrações do nascimento da princesa, agora se vê coberta de luto por seu desaparecimento.
“Estamos aqui para escurecer o futuro de Vibra. Sequestramos sua princesa sem nome, ela que causará caos ao reinado. Demandamos o término da linha sanguínea da realeza e a transferência completa de poder ao povo.” Vibra, que havia acabado de terminar as celebrações do nascimento da princesa, agora se vê coberta de luto por seu desaparecimento.

Eu realmente desgosto da estrutura desse jogo. Ir de diorama em diorama com um enorme incentivo diegético de fast travel não me apetece; repetir combates em uma arena despersonalizada não me dá nem fome; ter que ler linhas de diálogo sobre o pai da princesa menor de idade espiando seu guarda-roupas me enoja. 

A ideia que eu possuía na minha cabeça de Fantasian nunca seria real, claro. Inclusive, não estou nem na posição de julgá-lo por completo. Apenas joguei o que os jogadores tiveram acesso no primeiro mês de seu lançamento original de Iphone. De verdade, não estou fazendo julgamentos grandiosos ou querendo destroçar o retorno da Mistwalker ao gênero que marcou sua gênese. Esta é a minha visão sobre a primeira metade do jogo, e eu espero profundamente que acabe me acalorando à ele ao terminá-lo.

Agradeço por ler a primeira parte da análise! A segunda chegará em alguns dias neste mesmo link!!!

Uma cópia gratuita de Fantasian: Neo Dimension para Playstation 5 foi concedida pela Square Enix para análise no Recanto do Dragão.