Tenho uma mania de colocar dicotomias nos títulos de meus textos, mas juro que no caso dessa análise de Labyrinth of Galleria: The Moon Society essa escolha faz sentido.
Por vezes, escolhemos nos aventurar por caminhos difíceis, mesmo sabendo o quão dolorosa poderão ser essas jornadas. Isso é algo que está quase inoperavelmente enraizado no pensamento de vários entusiastas de jogos. Se de alguma forma você já se pegou terminando um jogo enorme e desafiador, frustrante o suficiente para fazer a maioria das pessoas desistirem, ou até mesmo acabou se vendo em um personagem como o Travis Touchdown de No More Heroes, você sabe muito bem como é a sensação. Há a presença de uma forte vontade de ir além, tanto por curiosidade quanto por um estranho “senso de dever” para com a obra.
Não são todos que preferem ou até gostam de ter experiências como essa, e é por isso que não é comum ver um jogo com um orçamento considerável exigir tanto do jogador. Lançado originalmente em 2020 para o Playstation 4 e Playstation Vita, exclusivamente no Japão, Labyrinth of Galleria: The Moon Society (originalmente “Coven and Labyrinth of Galleria”) foi um dos últimos jogos a terem saído para o Vita. O estúdio por trás dele é a Nippon Ichi Software, notória principalmente por SRPGs bizarros como Disgaea, Rhapsody, La Pucelle, dentre outros.
Esse texto faz parte da nossa comemoração do Mês das Mulheres! Você pode ver os outros clicando aqui! Além disso, ele também faz parte da Ode aos RPGs, um projeto em andamento do site! Os outros textos podem ser vistos aqui!
Em fevereiro de 2023, recebemos finalmente uma tradução para a língua inglesa publicada pela NIS America, versão essa que também inclui a opção de dublagem completa (e olha que tem muita dublagem nesse jogo). Diferente da maioria dos jogos da NIS, Galleria é um RPG no estilo “dungeon crawler” de primeira pessoa com claras inspirações em jogos como Etrian Odyssey da Atlus. Mesmo assim, Galleria não é o único que a NIS fez, pois é a sequência espiritual do Labyrinth of Refrain de 2016 e uma quase-sequência espiritual de The Witch and the Hundred Knight de 2013, mesmo que esse seja bem diferente até em gameplay.
Apesar de toda essa bagagem, Galleria funciona perfeitamente bem como sua experiência própria, pois o que ata a história dele à seus companheiros espirituais são apenas os laços temáticos, e mesmo assim eles continuam a se diferir em diversos pontos. Estes jogos tem uma certa reputação por lidarem com temas pesados, e aqui não é diferente. O tom pode parecer meio descontraído no início, mas é drasticamente alterado conforme a história avança. Mesmo assim, é admirável como Galleria consegue se manter constantemente bem humorado mas ainda ciente da importância de cada momento.
Isso é uma das vantagens do quão indulgente o jogo é: definitivamente um projeto de paixão dos desenvolvedores, tanto que às vezes precisei me perguntar como foi possível essa história ter saído do papel e acabado nas mãos de editores e vozes de dubladores. Alguns dos personagens principais são introduzidos apenas depois de mais de 60 horas de jogo, enquanto múltiplas cenas da história (em grande parte entregue em formato de visual novel) estão felizes em pairar indefinidamente situações não diretamente relevantes. Isso é… incrível! É por esse exato motivo que se torna tão fácil desenvolver uma relação de carinho pelas protagonistas Eureka e Nachiroux. Mesmo sem contar o resto do enorme elenco, que é variado e extremamente interessante, a presença das duas por si só já vende Galleria.
Esse jogo tem a coragem de te mostrar os créditos após “apenas” 40 horas, sem te avisar que aquela é apenas a primeira de três partes, da qual a última faz parte do post-game e pode chegar a durar dezenas de horas. Por enquanto eu terminei os dois finais principais (em cerca de 120 horas) e ainda estou progredindo pelo post-game em busca do final real… Labyrinth of Galleria não foi feito para ser uma experiêcia curta, e muito menos uma relaxante.
Normalmente, até RPGs super longos como Dragon Quest VII ou Persona 3 não tentam frustrar tanto o jogador e nem radicalmente alterar as expectativas que eles tem de seus respectivos jogadores. Galleria, no entanto, não tem esse filtro. Existem tantas mecânicas que parecem inúteis em primeiro olhar, tanto foreshadowing em todo lugar, tanta insistência em seu ritmo ao mesmo tempo extremamente rápido para um dungeon crawler e extremamente lento em partes específicas de sua progressão, e tantas, mas tantas mudanças de estrutura que é impossível se sentir confortável enquanto o joga.
Você pode ter 40 membros na sua party, cara. Quarenta. 15 membros principais e 25 suportes divididos em cinco pactos com características únicas em cada um de seus slots disponíveis. Ah, tinha esquecido de citar: você também cria todo personagem individualmente de classe e aparência até personalidade, e julgo impossível terminar o jogo sem ao menos ter passado por três parties inteiramente distintas, com a última dessas requerindo múltiplas reencarnações (que são melhor realizadas quando você chega no nível 99 com um personagem) para cada um dos membros, com o intuito de conseguir herdar novas habilidades de múltiplas classes junto com parte das estatísticas prévias; claro, pra isso você vai ter que subir o nível de cada um deles até o 99 diversas vezes, o que não é rápido e muitas vezes também não é uma tarefa fácil, mas de qualquer forma é algo esperado pelo design de Galleria.
Tudo isso sem contar as intermináveis caças à itens com drop rates minúsculo para concluir as Request Memos, que são obrigatórias para liberar a segunda parte do jogo e também para matar o boss final dela. Sem pesquisar um guia, é bem possível que um jogador simplesmente não descubra a existência da segunda parte que inclui uma protagonista e elenco quase que inteiramente diferentes, além de continuar a história que fica interminada na primeira parte. É basicamente Labyrinth of Galleria 2 escondido dentro do primeiro. Até as dungeons mudam drasticamente: vão de designs e puzzles meticulosos com uma quantia razoável de andares para duas enormes dungeons geradas aleatoriamente (excluindo um andar fixo de seis em seis) de mais de 100 andares cada. Nem vou tocar no assunto do postgame que julgo entrar em spoilers.
Meu ponto aqui é que esse jogo pede muito, mas muito de seu jogador. Eu nem cheguei a citar algumas das outras mecânicas e seções mais cruéis e desgastantes de Galleria, mas pode ter certeza que elas estarão aí se você resolver jogá-lo. Mas então porque será que acho ele um de meus jogos favoritos?
Pra começar, Labyrinth of Galleria não tem medo de sua escala e nem de suas mais dolorosas piadas onde a graça está no sofrimento do jogador. De certa forma, as frustrações e momentos complicados que você vai passar ecoam a experiência de Eureka e Nachiroux. Por não querer spoilar nada, não irei nem dar uma sinopse da história, pois acho ela especial o suficiente para não ser reduzida a uma curta descrição.
A experiência como jogador é demonstrada como a jornada da “Lanterne of Fantasmagorie”, ou apenas Fantie! Você basicamente joga com um fantasminha imortal ajudando a jovem médium Eureka e a jovem bruxa Nachiroux a navegarem os labirintos vastos com uma tropa inteira de bonecos-soldado à sua disposição. Enquanto as meninas passam por suas dificuldades nada invejáveis, você consegue observar tudo ao mesmo tempo que passa por suas próprias no labirinto. É uma forma de criar um grau de separação entre o jogador e as protagonistas enquanto ainda gera empatia vinda de suas ações na exploração. Diferente de Labyrinth of Refrain, que avançava a história até mesmo na dungeon, Galleria opta por mantê-la, em grande parte, apenas tematicamente relevante, e não diretamente.
Mas isso não significa que as dungeons tentam se manter completamente consistentes com a narrativa porque, bem, isso aqui ainda é um dungeon crawler de cabo à rabo. Você enfrenta bolas gigantes enfaixadas, mulheres acrobatas, laços inanimados assassinos e até um amalgamado verde de peitos chamado de “mãe” pelo jogo. Não irei mentir, vários desses inimigos realmente trazem significados à narrativa além de suas peculiaridades imediatamente aparentes (particularmente na parte 2), mas existem muitos que são apenas inexplicáveis. Essa desconexão é uma concessão mecânica que me interessa bastante em dungeon crawlers como esse. É possível abrir Galleria e passar uma sessão de cinco horas sem liberar uma sequer cutscene nova… só explorar e se deparar com um monte de asneira incrivelmente divertida! Você deve se preparar para qualquer variedade de gameplay quer tiver que lidar na hora, então a imprevisibilidade sempre te pega de surpresa.
E é justamente este um dos motivos que mais me grudaram na experiência. Saber exatamente a estrutura de um jogo desde seu início é algo que me tira completamente de qualquer que seja o intruito de uma obra. Até Demon’s Souls se tornou maçante para mim por causa de sua insistência em explicitar quase toda sua curva de progressão desde o início. Em Labyrinth of Galleria, mesmo no Cartiervita, que é de longe a parte mais previsível e mecânicamente monótona do jogo, era impossível prever quando e porque viria a próxima cutscene. Isso sem contar os acontecimentos importantes atrelados à esta parte da narrativa que são despejados constantemente quando você libera de alguns em alguns andares fixos.
Ele puxa sua paciência até o limite. Toda área é mais opressiva do que aparenta inicialmente e, dependendo de uma morte particularmente brutal da sua party ou uma falha de posicionamento de atalhos por sua parte, tudo pode ir por água abaixo e necessitar meia hora de preparação para voltar onde você estava.
Mas é aí que uma das sacadas mais geniais de Labyrinth of Refrain retorna para te ajudar de toda forma possível: os pontos de Reinforce. De forma geral, eles servem para quebrar qualquer regra estabelecida de um dungeon crawler. Com o sistema você pode curar seus personagens fora de combate com um clique, ficar completamente invisível e imune à alguns chãos infectados, usar itens em combate, criar saídas e entradas dinâmicas da dungeon em praticamente qualquer lugar, colocar atalhos em qualquer andar e até quebrar paredes da dungeon (entre outras habilidades)! É um sistema extremamente versátil que te faz parecer um completo maluco explorando, com a única limitação de que você tem apenas 100 pontos de Reinforce. Você só pode os recuperar ao sair de uma dungeon fixa ou avançar um andar em uma aleatória. Além disso, devido à outras mecânicas de party building, você vai passar a maior parte de sua gameplay com menos de 100 pontos máximos.
Mecânica balanceada? Com certeza não! É fácil acabar ficando com pontos Reinforce demais ou de menos, mas essa é só mais uma das peculiaridades divertidas de Galleria; ele te deixa ver além da cortina de um RPG à qualquer custo. Existem tantas maneiras de vencer lutas e explorar dungeons que a maior parte dos jogadores estarão em situações completamente diferentes mesmo que estejam na mesma parte do jogo. Aqui a Nippon Ichi quis criar basicamente uma sandbox controlada onde você pode aproveitar um loop único de gameplay que foca em mecânicas peculiares. Exemplo: praticamente todo combate excluindo chefes e alguns encontros mais azarados requerem apenas que você ligue o combate automático. Os encontros com inimigos testam sua build mais que sua habilidade estratégica, que por sua vez é testada nos bosses.
Eu arrisco dizer que lidar com os inimigos antes do combate acaba sendo até mais profundo que a luta em si, pois todo inimigo é visível como símbolos 3D vermelhos, roxos ou pontudos a qualquer momento (ao menos que você esteja atingido com “fedor”), de maneira similar aos FOEs do Etrian Odyssey. O engraçado é que, mesmo que os inimigos normais sejam mostrados dessa maneira, eles seguem rotas meio aleatórias pelo mapa ao invés de servirem como puzzles, pois esse dever agora está nos símbolos roxos! E além de ficarem no seu caminho, eles também te dão lutas extremamente complicadas se você acabar sendo pego por um sem estar com nível bem maior que o do andar em questão ou se estiver acumulando XP entre batalhas, o que te impede de escapar.
As dungeons, principalmente as da parte 1, são lotadas de diferentes tipos de desafios colados uns nos outros. É uma variedade invejável de situações, uma vantagem inerente ao gênero de DRPG. É basicamente um playground de design à cada passo sem filtro algum!
Por isso que a parte 2 é uma mudança tão radical em todos os sentidos. As dungeons geradas aleatoriamente fazem o jogo perder seu véu de design que era ao menos um pouco rígido antes. Agora todo andar é constituído por salas parecidas e dá um gosto parecido com o de um roguelike, mesmo não tendo nada em comum com o gênero além da aleatoriedade da geração de mapa e a liberdade que isso oferece. Alguma variedade maior nesse aspecto iria bem, inclusive… Mas de qualquer forma a primeira das dungeons aleatórias pode ser conquistada sem muito esforço, o que não pode ser dita da segunda delas, o Cartiervita.
Cartiervita é uma dungeon absolutamente enorme e tão repetitiva quanto a primeira, mas dessa vez ela espera que você reencarne seus personagens com o soul transfer para ficar forte o suficiente para conquistá-la. É basicamente o paraíso de qualquer pessoa que ama grindar, pois sempre que você precisar grindar, vai ter que voltar aqui pois é o lugar mais eficiente (além de precisar fazer isso na primeira vez que passar por ela). É não só irritante, mas também extra repetitivo.
Não sei se ficou claro ainda, mas eu tenho um certo carinho até pelas mais cruéis das mecânicas que mencionei até agora. Labyrinth of Galleria não economiza em nada o impacto que quer causar, e é por isso que é complicado deixar o seu apelo tangível para a maior parte dos jogadores. Um gosto por mapas labirínticos, gerenciamento de recursos em grande escala e tolerância para passar horas e horas em menus de criação de personagens com certeza ajuda, mas mesmo assim Galleria é hostil à maioria dos tipos de jogadores. É quase impossível imaginar alguém gostando de todos os aspectos dele, e é aí que vem o masoquismo: por que alguém jogaria algo dessa escala, com temas tão pesados e uma gameplay que não respeita seu tempo? Bem, Galleria é uma daquelas obras.
Este jogo basicamente te atiça a seguir em frente por todos os lados possíveis. As vezes por um cliffhanger, as vezes pelo quão perto você está de terminar uma maldita request onde deve adquirir itens que vendeu há muito tempo atrás sem querer, as vezes simplesmente por fazer umas migalhinhas de progresso que sejam. Mesmo com tudo isso, muitos jogadores ainda não vão querer terminar esse negócio, e é aí que vem aquele senso de dever citado no início do texto. Seja o motivo a pura curiosidade de ver o que Galleria tem de especial, uma fervorosa vontade de continuar evoluindo sua party por puro prazer mecânico, ou até um laço forte com os personagens, você vai poder tirar o que quer da obra, mas isso vai vir com inúmeras outras complicações. Essa é parte do que a faz especial.
Eu realmente queria poder comentar mais profundamente sobre a história, mas é muito fácil dar spoilers enormes. Tudo é foreshadowing, até a tela de carregamento! Isso não significa que você precisa internalizar toda gotinha de simbolismo possível, mas a narrativa é tão cuidadosamente construída que você vai conseguir tirar múltiplas lentes pelas quais pode olhar os acontecimentos. Ao meu ver, um dos temas mais fortes passados pelo jogo é a força da fraternidade entre mulheres, mesmo em um mundo onde existem pessoas a cada canto tentando tirar proveito delas. Ambas Nachiroux e Eureka acham força uma nas outras, assim como diversas outras personagens conseguem criar laços com as mulheres que as cercam. Infelizmente, para uma das antagonistas da história, esse não é o caso, e sua solidão e isolamento são o que à levam a fazer coisas imperdoáveis. A maior parte dos personagens de Galleria são pessoas profundamente conturbadas, mas mesmo assim é possível ver uma luz no fim do túnel para algumas delas (eu tô pensando em você, príncipe Hubert!).
Fico feliz que existam experiências como Labyrinth of Galleria. É uma obra extremamente indulgente e cruel, mas com isso também vem um nível fascinante de amor, carinho e paixão, desde seus temas até a experiência de jogá-lo. É uma obra seminal e provavelmente o projeto mais ambicioso e laboriosamente construído da Nippon Ichi Software. Um marco silencioso no meio dos jogos que espero ter impactado outros jogadores assim como foi meu caso. O conto de Alluna e Alstella é inabalável; uma ceia de emoções sem igual.
Uma cópia gratuita de Labyrinth of Galleria: The Moon Society para PC foi concedida pela NIS America para análise no Recanto do Dragão.