A gente sempre ouviu sobre “personalidade” aqui e ali, mas poucos tiveram vontade de pesquisar a fundo sobre essa coisa subjetiva que supostamente analisa e descreve nossos comportamentos rotineiros.
Além de como isso funciona, como será que a gente constrói nossa “personalidade própria”? E se… eu fosse tipo um protagonista silencioso de anime, que se dá bem com todo mundo e não fala nada além de mandar joinha, ainda tenho uma personalidade própria?
Sim! Nesse texto, vamos investigar algumas das teorias mais populares que examinaram a fundo esse conceito tão complexo, focando em como as teorias de Inconsciente Coletivo e os Arquétipos de Jung influenciaram algumas mídias do mundo contemporâneo, encerrando com a franquia de RPGs japoneses “Persona” (que nome suspeito, né?).
Antes de começar, vale ressaltar: todas as teorias citadas aqui são meramente isso, teorias. O cérebro humano é um emaranhado de ondas crípticas que se dissolvem num indecifrável oceano de dados, ficando cada vez mais complexos à medida que a humanidade evolui. Assim como muitas dessas teorias poderiam estar certas, muitas poderiam estar erradas, e por aí vai.
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O surgimento do conceito de “personalidade”
Começamos com a teoria de Cláudio Galeno, a tese dos Quatro Temperamentos da Personalidade (também conhecida como “Humorismo”), inspirada na hipótese dos gregos Empédocles (495 a 435 a.C.) e Hipócrates (460 a 370 a.C.).
Empédocles foi responsável por propor a ideia de que todas as substâncias do mundo seriam compostas de quatro elementos: água (fria e úmida), ar (quente e úmido), fogo (quente e seco) e terra (fria e seca).
Hipócrates passou a integrar essa especulação em um modelo médico, que atribui a personalidade de uma pessoa a quatro fluidos presentes dentro do corpo humano, chamados de “humores” (com umor significando “fluido corporal” em latim).
Galeno então estabeleceria a teoria das quatro personalidades, ou “temperamentos”: Sanguíneo, Fleumático, Colérico e Melancólico, relacionados ao equilíbrio de quatro elementos: predominância de sangue, excesso de fleuma, bile amarela ou bile negra, respectivamente. Os efeitos seriam:
- Os sanguíneos possuem personalidade otimista, afetuosa, energética e alegre, mas sua confiança pode se transformar em egoísmo;
- Fleumáticos são quietos, frios, racionais e gentis, mas podem ser excessivamente tímidos e lentos. Fleuma é um termo que hoje significa o muco que expelimos quando estamos resfriados;
- Já coléricos são irritadiços, e sofrem com o excesso de “bile amarela”, produzida pelo fígado;
- Por fim, melancólicos possuem inclinação às artes e uma personalidade mais poética e subjetiva, mas podem sofrer com medo e depressão. A tal “bile negra” viria do baço.
Já que cada fluido possuía sua função, podíamos fazer uma prática comum da época para resolver desequilíbrios temperamentais: purgações ou sangrias, que sim, consistiam em literalmente te espetar em lugares específicos do corpo para “reduzir fluidos corporais” e restabelecer o equilíbrio.
Muitas teorias posteriores seriam diretamente influenciadas pelos humores sugeridos por Galeno.
“A trama se complica”
A Teoria dos Traços, de Gordon Allport, divide a personalidade em três frações: Traços Cardinais, Centrais e Secundários. Esses traços eram medidos em uma pessoa através de uma pesquisa, que então era relacionada a um banco de dados de 4.500 adjetivos considerados “observáveis e confiáveis” para descrever a personalidade de alguém.
Esse método, chamado Hipótese Lexical, seria eventualmente refinado em duas outras teorias: o Questionário dos 16 Fatores de Personalidade de Raymond Cattell, que usava apenas 171 palavras desse banco de dados (não confunda com os 16 tipos do MBTI), e a Teoria do Grande Cinco (ou “Big Five”), muito relevante para a psicologia cognitiva nos dias atuais.
No fim das contas, são muitas teorias, todas complexas demais para se dissertar num único texto sem ficar super entediante. Inúmeros profissionais divergiram fortemente nos seus estudos ao longo das décadas, mas, mesmo assim, podemos expor dois padrões que se destacam: a característica da construção dinâmica e da mutabilidade da personalidade.
Personalidade se copia…
Você já ouviu alguma frase parecida com “somos um pouquinho de todo mundo com quem já cruzamos na rua”? É claro, essa metáfora hiperbolizada não é uma regra para a vida, mas sumariza bem o processo da construção dinâmica das nossas personalidades.
Assim como afirmava o russo Lev Vygotsky na Teoria do Construtivismo Social, os métodos de raciocínio, compreensão e memorização das crianças eram herdadas por três meios: cultural, interpessoal e individual.
Resumindo, ele afirmava que a cognição dos seres humanos era moldada através de interações em diversos níveis com outras pessoas, especialmente durante a infância, quando as virtudes e os valores ainda não haviam se concretizado.
Essa ideologia foi reforçada ainda mais pela Teoria da Aprendizagem Social de Albert Bandura, que sugeria que crianças não se desenvolviam através de sistemas de recompensas ou punições, mas simplesmente imitando ações das pessoas que serviam de modelo à ela; no caso, seus pais ou adultos responsáveis.
O ciclo funcionava assim: pessoas ao redor da criança eram apresentadas com situações específicas e reagiam de certa forma. Essas ações eram analisadas pelas crianças que, consequentemente, recriavam esse cenário na própria cabeça e tentavam reproduzir, fisicamente ou verbalmente, as mesmas ações.
Foi aí que ele realizou o Experimento do João-Bobo de 1977. Escolheu 36 meninos e 36 meninas e os dividiu em três grupos: um era o grupo de controle, que não observava as atitudes dos outros; o segundo observava um adulto agindo de forma agressiva, batendo e xingando o boneco inflável; por fim, o terceiro assistia a um adulto que ficava passivo em frente ao brinquedo.
O resultado era previsível: as crianças do segundo grupo não só imitavam perfeitamente o que os adultos faziam, como também inventavam novos métodos de agredir o João-Bobo com outros brinquedos da sala.
A conclusão do estudo foi criticada por alguns motivos, dentre eles a famosa discussão sobre como mídias violentas como videogames e programas de TV criam (ou não) pessoas com tendências agressivas, discussão que até hoje não viu uma conclusão.
Além disso, há a Teoria do Efeito Catártico, que diz que pessoas que se identificam com personagens violentos (como nos jogos) expressam esses sentimentos no mundo virtual e consequentemente são mais comportadas no mundo real.
Outros detalhes como classe social, cultura regional e até padrões de comportamento de gênero estimulados pelos pais (como homens serem “independentes” e mulheres serem “empáticas”, etc.) poderiam ter influência significativa, mas não haviam sido consideradas no estudo da época.
… Mas também se transforma
Se você acha que as teorias até agora são inconclusivas demais, não esquenta, porque ainda precisamos encerrar aqui com o estudo da adolescência e do desenvolvimento humano, de Granville Stanley Hall.
Basicamente, a ideia se baseia na etimologia da palavra, “adolescência”, que significa “brotar”, do latim adolescere. Essa época seria, em média, dos 12 aos 18 anos, servindo de intermédio entre a infância e a idade adulta.
No geral, Stanley acreditava que essa faixa etária era mais suscetível de sofrer de ansiedade e depressão, com medo de rejeição, fantasias com amores platônicos, afirmando que adolescentes tanto começam a perceber as “entrelinhas da realidade” como também tomam decisões mais sensíveis, além de ter uma tendência atenuada à criminalidade no geral.
Em contrapartida, ele também acreditava que a adolescência era uma espécie de renascimento da personalidade, onde impulsos irracionais eram subvertidos com pensamentos críticos e cada vez mais bem condicionados.
Ou seja: duas das mais populares afirmações feitas sobre o desenvolvimento do comportamento dos humanos na área da psicologia são a influência das pessoas por aqueles que a cercam, e a mutabilidade ou transitoriedade do seu estado de mente atual.
Basicamente: o cérebro é plástico, moldável que nem massinha de Play-Doh.
O Inconsciente Coletivo e os Arquétipos de Jung
Aqui chegamos no tema que vai desaguar no ponto final do texto: a Teoria do Inconsciente Coletivo e os Arquétipos de Carl Gustav Jung, possivelmente a contribuição mais notória do psicanalista pupilo de Sigmund Freud.
Essa pesquisa foi instigada por conta das observações que Jung fazia sobre diversas culturas e costumes ao redor do mundo, onde foi percebendo semelhanças entre as temáticas de histórias e mitologias de cada civilização, sem contar nos significados por trás de cada uma.
Foi aí que Jung elaborou a teoria da “memória coletiva”, que funciona em uma camada mais profunda que o inconsciente e das experiências individuais, o que ele chamou de “inconsciente coletivo”.
O inconsciente coletivo seria distribuído entre membros de uma mesma sociedade através das memórias herdadas por histórias (contadas por meio de mitos, contos, músicas, poemas, peças ou literatura, especialmente as religiosas).
Para quem quiser se aprofundar no assunto, o que Jung descreve aqui é o fenômeno da “memética”, idealizado pelo biologista Richard Dawkins no livro “O Gene Egoísta”.
Lá, ele desenha paralelos entre a teoria evolucionista de Darwin da “Seleção Natural” (genética) e as informações que são veiculadas na sociedade, sendo descartadas, alteradas ou confirmadas ao longo das gerações (memética).
O objetivo do inconsciente coletivo é de atuar como os moldes fundamentais que funcionam no núcleo da mente do indivíduo, tendo um impacto irrefutável nas ações e razões da pessoa, independentemente das suas experiências vividas ao longo dos anos. Ela viveria ao lado do ego, ou o “Self” do indivíduo, além de seu inconsciente individual.
Essa camada é fundamentalmente construída por vários arquétipos (do latim archetypum, ou “modelo primordial”), um conjunto de comportamentos racionais e emocionais organizados em padrões: temos o arquétipo do Velho Sábio, do Herói, da Madona, o Trapaceiro, e por aí vão.
Podemos observar exemplos desses arquétipos tanto no dia a dia quanto em diversas produções culturais.
Você pode ver seus pais, avós ou professores como atuantes do papel do Velho Sábio, por exemplo, enquanto figuras como Judas (Catolicismo) ou Loki (Mitologia Nórdica) se encaixam no arquétipo do Trapaceiro.
Mas para Jung, existiam quatro arquétipos fundamentais: Persona, Sombra, Animus eo Self.
- Persona: Derivado da palavra “máscara”, em latim, representa a forma como estilhaçamos nossa personalidade e apenas mostramos fragmentos ao mundo em situações específicas, como quando costumamos responder a regras e normas da sociedade em locais públicos;
- Sombra: Retrata nossos instintos da vida que são reprimidos, e que geralmente seriam vistos como “inaceitáveis” frente às normas da sociedade moderna, como agressão, ganância, dentre outros;
- Anima e Animus: Anima representa os aspectos femininos nos homens, enquanto Animus representa os aspectos masculinos nas mulheres. Jung acreditava que todos os indivíduos, no nível coletivo e individual, tinham potenciais inerentes dos dois lados, mas eram lentamente estimulados a abandonar uma das metades ao longo da vida;
- Self: O arquétipo central, que representa a verdadeira face do indivíduo, que sincroniza todos os outros arquétipos de alguém. Para Jung, o objetivo da vida é a busca (consciente) de alcançar o estado do Verdadeiro Self.
A presença das teorias da psicologia em diversas mídias
Afinal de contas, quais são alguns dos exemplos de mídias influenciadas por essa infinidade de teorias que a gente acabou de ler sobre?
Como era de se esperar, ideias e projetos culturais de todas as épocas da história da humanidade poderiam se encaixar de alguma forma ou de outra no influente meio do campo das teorias da psicologia, tanto de forma direta quanto indireta.
Por exemplo, você se lembra de onde tudo começou, com o humorismo de Galeno? Essa ideia também foi convertida num conjunto de mecânicas dos jogos de RPG “Vampire: The Masquerade”, do universo “World of Darkness”, que vai de jogos de tabuleiro até videogames.
Nele, os vampiros desfrutam de algo chamado “Ressonância Sanguínea”, onde as personalidades das vítimas que terão seu sangue consumido poderão oferecer diferentes tipos de habilidades aos traiçoeiros morcegões humanóides.
Em contrapartida, temos o antigo costume do jogo de cartas Tarot, criado originalmente por volta do século 15 com o diferencial das ilustrações com elementos místicos e conteúdos astrológicos nas cartas.
Eventualmente, no século 18, essa prática seria revivida com outras finalidades: “cartomancia”, ou a adivinhação do futuro através da leitura de cartas, que eventualmente popularizou o baralho esotérico do tarot, em específico o baralho do Tarot de Marselha. Aqui, temos duas novas questões em destaque:
A primeira é sobre a narrativa contada pelo baralho, uma história no estilo do Monomito (ou a “Jornada do Herói”), em que o primeiro cartão consiste d’O Louco (número 0), um inocente e tolo pedinte que sai para explorar o mundo e se entregar às suas causalidades, enquanto a carta final seria O Mundo (número 21), o destino final que representa o encerramento do ciclo completo da vida do Louco.
Já a segunda questão é exatamente sobre como os arquétipos jungianos (que surgiram cerca de 300 anos depois das cartas) se interconectam, de forma que o psicanalista identifica também o baralho como uma de suas grandes inspirações para a formulação da teoria.
Essa conexão serviria de inspiração para muitas obras modernas, como nas reinterpretações do baralho na narrativa do jogo eletrônico Cyberpunk 2077, ou também através dos “Stands” da franquia de mangás e animes “JoJo’s Bizarre Adventure”, onde, por exemplo, a personalidade do poderosíssimo antagonista Dio se manifesta através do espírito “Za Warudo” (O Mundo), capaz de congelar o tempo.
‘Shin Megami Tensei: Persona’, as teorias Jungianas e a magia dos RPGs
A franquia de J-RPGs eletrônicos “Persona” são spin-offs derivados de “Shin Megami Tensei”, ambos da desenvolvedora japonesa Atlus.
Diferente de SMT, Persona não só tem fortes inspirações no estilo dos combates de Pokémon como também tem diversas inspirações temáticas na teoria dos arquétipos de Jung, nas cartas de tarot esotérico (além de figuras religiosas, mitológicas e literárias), e também nos conceitos de terapia cognitiva, que já iremos ver.
A partir da terceira iteração, Persona 3 de PlayStation 2, os jogos passaram a se dividir em duas metades: a primeira fração servia como uma espécie de “simulador social”, onde você acompanhava os protagonistas (geralmente estudantes de colegial) e vivia uma rotina comum.
Escolhas como estudar, ir ao cinema ou levar seus amigos para comer num restaurante não só melhoram atributos do personagem (como Inteligência, Coragem e Charme), como também fortalecem suas amizades, descobrindo mais sobre a história de cada um deles e ganhando atributos cruciais ao combate e ao recebimento de experiência ao longo da jornada. Essa métrica é chamada nos jogos de “Social Links”, ou Conexões Sociais.
Já a segunda metade consiste em um sistema de “dungeon crawling”, onde os heróis caminham em vastas áreas alimentadas por sentimentos negativos do inconsciente coletivo da sociedade, combatendo monstros conhecidos como “Sombras” usando as manifestações espirituais de suas personalidades, chamadas de “Personas” (já percebeu onde isso vai dar, né?), num estilo muito parecido com os Stands de JoJo.
Apesar de serem cercados de amigos, nós tecnicamente controlamos um “protagonista silencioso” que fala em momentos raros e muito específicos, onde somos instruídos a escolher o que queremos falar e recebemos recompensas ou reações dos outros personagens de acordo com essas decisões.
Persona 5 e os Palácios Cognitivos
No mais popular jogo da franquia, Persona 5 (PlayStation 3 e 4), um sucesso internacional responsável por popularizar a franquia no mercado ocidental, somos introduzidos a um conceito muito importante: os Palácios Cognitivos.
Resumindo a ópera: quando uma pessoa possui uma cognição extremamente negativa, pútrida e hedionda, esses sentimentos acabam criando um “Palácio” dentro da sua psique, que pode ser acessado pelos protagonistas. Vamos com calma, acompanhe comigo:
O primeiro antagonista que vira alvo do grupo de heróis “Phantom Thieves” é o professor de educação física, Suguru Kamoshida, acusado de violentar fisicamente seus estudantes masculinos e abusar sexualmente das estudantes femininas, condição tão forte que acaba transformando o colégio em um enorme castelo medieval dentro da dimensão alternativa do Metaverso, em que sua cognição faz com que ele se “perceba como rei e dono de todos os alunos e professores”.
O objetivo dos protagonistas é então de “roubar seus desejos impuros” materializados em forma de uma coroa; caso os heróis sucedam nesse objetivo, o Kamoshida da dimensão real entrará em desespero e confessará todos os pecados que cometeu, encerrando o interminável ciclo de sofrimento que anda causando.
Essa é uma metaforização extrema das Teorias de Terapia Cognitiva de Aaron Beck, que por muitos anos praticou experimentos para compreender métodos que melhorassem as terapias convencionais utilizadas por psicólogos, até começar a notar como a depressão afetava a percepção de seus pacientes.
Basicamente, o que muitos deles externalizavam de forma automática sobre si mesmos, o futuro e a sociedade eram, segundo ele, não só “produtos” da depressão, mas também frutos de cognições distorcidas que deveriam ser investigadas e validadas pelos psicoterapeutas; afinal de contas, segundo ele, “há mais na superfície do que nosso olhar alcança”.
A partir dessa nova abordagem nas terapias, os pacientes passavam a serem capazes de identificar sobre quando seus medos eram irracionais ou não, e como suas perspectivas estavam sendo distanciadas da realidade (pense no exemplo do “copo meio cheio ou meio vazio”). Isso continuaria até o ponto em que os pacientes atingiriam autonomia na reconstrução e ressignificação da sua ótica sobre o mundo.
A construção da “personalidade perfeita”
Para encerrar esse texto, quero pessoalmente comentar sobre uma postagem com a qual esbarrei em um dos diversos grupos de Facebook da franquia.
Muitas pessoas comentavam numa thread sobre como a franquia, Persona, havia auxiliado-os a trabalhar mais na própria personalidade fora do mundo digital. Eram histórias de pessoas que passavam meses, anos isolados da sociedade, seja por medo, traumas ou outras inúmeras, incontáveis razões que tiveram de sofrer na vida.
É claro, devemos lembrar que estamos falando de um jogo com protagonistas perfeitos, cheios de amigos e poderes fantásticos. Os protagonistas silenciosos dos três jogos, Minato Arisato, Yu Narukami e Ren Amamiya, não só eram fictícios como também possuíam “a Carta Curinga” (ou O Louco, a “carta 0” do tarot), que lhes concedia a habilidade de absorver qualquer outra personalidade que derrotassem em combate, tornando-os essencialmente invencíveis.
Essa inclusive é uma piada na comunidade dos RPGs japoneses: muitos jogos começam com futilidades como “salve um gato preso na árvore”, e quase sempre terminam com “mate o Deus da Morte” ou “evite a aniquilação total do universo”, e isso é fruto de uma cultura (no caso, a do Japão) que valoriza fortemente as responsabilidades do indivíduo frente o resto do mundo.
“Se uma única pessoa é capaz de destruir o mundo, então uma única pessoa deveria ser capaz de salvá-lo.”
Foi aí que eu me deparei com um comentário que não só me fez entender o porquê da franquia ter sintonizado tão bem com meus gostos pessoais, como também me ensinou a valorizar a vida sob uma ótica diferente.
Um homem, sob o nome de “Frank”, postou o seguinte:
“Esse tipo de mídia é perfeita para dar às pessoas as experiências sociais que lhes falta na vida real, acompanhada dos superpoderes, já que os jogadores frequentemente se colocam no lugar dos ‘protagonistas genéricos e silenciosos’ (self-insert).
Uma dica pra vocês, meus caros: mantenham em mente as estatísticas e habilidades do seu protagonista fora do jogo, e tentem se esforçar para serem legais na vida real que nem esse avatar que criaram no mundo virtual. Pode ajudar a melhorar sua vida, e eu desejo tudo de melhor para vocês, apesar de não conhecer ninguém daqui.
Se nada mais, isso faria as conquistas de Persona serem mais gostosas – porque você passa a pensar ‘se eu tenho os mesmos traços do meu protagonista, significa que eu posso aprender a ser assim também’.
A minha filosofia é tentar criar um personagem com quem eu gostaria de jogar nos RPGs, mas que possa me ajudar a ser melhor na vida real também. Eu levei isso de um jeito bem literal quando comecei a treinar artes marciais e fazer exercícios.
Enfim, eu gostaria de ser o tipo de pessoa com quem me fantasio nos jogos; isso me faz ser mais saudável, mais habilidoso, e me motivou a ser bem menos deprimido”.
Esse foi provavelmente o relato mais tocante que li na vida, já que até pouco tempo atrás podia afirmar que Persona 5 era de longe a maior influência que tive na época que sofria de depressão, algo que me instigou a estudar mais sobre videogames e psicologia no geral e sair desse ciclo (sem contar que resultou nesse textão colossal que você lê agora).
Ah é, e afinal de contas, o que acabou de acontecer aqui é mais ou menos o que Aaron propunha em sua tese: a adoção de novas cognições que trabalhem ao nosso favor na rotina comum da vida.