Resident Evil: A Mansão Spencer é um cenário Gótico perfeito

No mais recente capítulo desta franquia, Village mergulha de cabeça no Gótico, colocando Ethan Winters para explorar um misterioso castelo no Leste Europeu comandado por uma figura quase-religiosa e habitado, dentre outras criaturas, por vampiros. Porém, essa relação íntima entre Resident Evil e o movimento literário gótico não é novidade, e a Mansão do Lorde Oswell Spencer, principal cenário do primeiro jogo, já havia deixado isso bem claro.

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Uma confissão

Vou ser direto: eu nunca havia jogado Resident Evil. Mas sim, é óbvio que eu conhecia Jill Valentine, Chris Redfield, Leon Kennedy e outros personagens icônicos não só da franquia, mas do mundo dos games como mídia e como arte.

Em minha defesa, eu sou exatamente o contrário do público-alvo de Resident Evil: não curto tanto jogos de terror e sempre odiei seções de puzzles. Mesmo assim, resolvi tomar vergonha na cara e testar meu limite: com meu suado dinheiro, comprei o Resident Evil HD Remaster, que nada mais é do que um remaster do remake para GameCube, que veio do clássico de PS1.

Confuso? Talvez. O que importa é: eu estava prestes a iniciar minha jornada na clássica franquia de survival horror da Capcom.

Jill, Chris e Wesker na entrada da Mansão Spencer, em Resident Evil.

Fora do console, algo semelhante acontecia.

Sempre fui um leitor ávido, daqueles que pedem livros (ou vale-presentes de livrarias) de aniversário e de Natal. Porém, embora minha prateleira ostente diversos títulos de fantasia, horror e ficção histórica, existe um movimento que sempre me atraiu, mas nunca, de fato, sentei para ler e realmente explorar: o gótico.

Há algumas semanas, resolvi honrar o título (que eu mesmo me dei) de leitor, e, incentivado por uma promoção, comprei e estou lendo alguns clássicos deste tipo de literatura tão importante e influente. Em paralelo, passei a pesquisar sobre o movimento, seus autores e suas inspirações.

Seguindo uma rotina de ler o gótico de manhã e jogar Resident Evil à noite, não demorou muito para perceber uma clara conexão entre os dois.


O Gótico: corredores escuros de castelos lúgubre

Pintura gótica
“Monastery Ruins in the Snow” (1819) – Caspar David Friedrich

As origens do Gótico podem ser traçadas até a Inglaterra do séc. XVIII, mais especificamente até o ano de 1764, com a publicação anônima do romance O Castelo de Otranto, escrito por Horace Walpole. Porém, sua época de ouro só veio dois séculos depois na Era Vitoriana, quando grandes obras como Frankenstein de Mary Shelley e Drácula de Bram Stoker foram publicados, assim como os trabalhos de Edgar Allan Poe, Charles Dickens, dentre outros importantes nome da literatura mundial.

Em anos mais recentes, o gótico segue representado por obras como O bebê de Rosemary, de Ira Levin, e Entrevista com o Vampiro, de Anne Rice, que foram adaptadas para filmes que as popularizaram e continuaram a difundir a estética e temática do movimento.

Retrato de Mary Shelley

As obras góticas são caracterizadas por discussões acerca da moral, filosofia, psicologia, política e religião, nas quais os vilões muitas vezes são metáforas para questões e problemas humanos profundos, tudo isso envolto por um clima de mistério e terror que incluem personagens melodramáticos e monstros como vampiros e fantasmas.

Porém, de longe, o ponto mais importante e, se não, mais crucial da literatura gótica (refletido no próprio nome do movimento, que deriva de um estilo arquitetônico) é o cenário que serve de palco para as histórias se desenrolarem.

Corredores decrépitos e claustrofóbicos de decadentes castelos e igrejas medievais isolados em meio a florestas escuras são verdadeiras marcas registradas do movimento. Os personagens estão presos à mercê do ambiente decadente que os cerca, sendo constantemente ameaçados pelo mal que reside naquele lugar.

Se você não está convencido, nem pegou o trocadilho que fiz nessa última linha, de que o palco dos eventos do primeiro Resident Evil é uma obra-prima de cenários do gênero gótico, senta aí na cadeira porque ainda não acabei.

A Mansão Spencer: as paredes têm ouvidos, olhos, braços e pernas

Isolada em meio à natureza indomada das Montanhas Arklay, nos arredores de Raccoon City se encontra uma das localidades mais famosas da história dos games e o principal cenário do primeiro Resident Evil: a Mansão Spencer.

A princípio, o casarão se apresenta como um lugar seguro, afinal, é o que impede que Jill, Chris e sua equipe se tornem vítimas dos “cães agressivos” que vêm aterrorizando os habitantes da região, deixando para trás seus corpos (ou parte deles) em meio à neblina e à densa vegetação, apenas para que outra equipe seja enviada e receba o mesmo destino.

Porém, esta sensação de segurança rapidamente se esvai e fica óbvio que a mansão decadente não quer ninguém aqui, seja pelo desaparecimento de Jill ou Chris (dependendo de quem você escolheu), pelo sangue, ou, mais evidentemente, pelo virar de cabeça lento de um zumbi que devora um cadáver em uma das cenas mais inesquecíveis de toda a indústria.

Primeiro zumbi de Resident Evil

E não é à toa. O idealizador do local, o fictício arquiteto George Trevor, fora contratado por Sir Oswell E. Spencer, um dos vilões e co-fundadores da Umbrella, para criar uma habitação que ironicamente não deveria servir para a moradia, mas sim para servir de fachada na hora de ocultar experimentos bizarros, no qual o homem, incendiado por sua ganância e poder, quis “brincar de Deus”.

Seus corredores claustrofóbicos adornados por pinturas decrépitas, sua planta labiríntica lotada de passagens secretas e portas trancadas, assim como a decoração aristocrática, que conta com escudos, brasões e armaduras, constituem um paralelo interessante que nos incomoda e, para o sucesso de George Trevor e felicidade do Lorde Spencer, nos faz querer sair dali o mais rápido possível.

É um tipo de vale da estranheza arquitetônica: estamos em uma opulenta mansão, com quartos, salas de estar e de jantar, banheiros, mas que não foi construída para ser habitada.

Sala de quadros em Resident Evil

Ao mesmo tempo, nós, jogadores, ficamos intrigados. O que aconteceu aqui? O que são esses monstros? Onde estão estas pessoas que aqui habitavam? O que é este lugar?

Estas perguntas permeiam nossas mentes, alimentando o clima de mistério e a atmosfera opressora, constituindo a principal “força” que nos move em direção à próxima porta, na tentativa de encontrar a próxima chave para destrancar outro cômodo. É o que nos faz virar a página e progredir no jogo.

Este clima de apreensão, assim como a mansão que, mesmo decadente, se mantém de pé, nos mostra que o seu passado é envolto pela escuridão, pelo mal e que, além disso, este passado está se encontrando com o presente. Não é apenas Jill e Chris que estão à mercê das intenções do local, mas sim toda Raccoon City.

Assim como os castelos, em O Castelo de Otranto, Drácula e outras obras do movimento gótico, a Mansão Spencer do primeiro Resident Evil se apresenta como um personagem próprio, recheada de segredos, história e atitudes diante dos outros. O cenário do primeiro Resident Evil é uma peça-chave para sua narrativa: o casarão quer matar quem quer que ouse abrir seus portões principais, e seus motivos são lentamente revelados, culminando em acontecimentos que hoje constituem o coração da lore de toda a franquia.