Afinal de contas, o que faz um jogo ser “Resident Evil”?

Arte 25 anos de Resident Evil
Arte de 25 anos de Resident Evil. Fonte: Divulgação/Capcom

Com mais de 25 anos de idade, a lendária franquia de zumbis da Capcom Resident Evil se instalou como uma das mais populares e memoráveis na indústria dos jogos, persistindo com sua popularidade até hoje. Mas é claro que, ao longo dos anos, nós também veríamos incontáveis mudanças na filosofia desses jogos, então fica aí a pergunta: “O que é um Resident Evil?

Aqui, vamos explorar o conceito da “fenda temporal” que dividiu uma das franquias mais longas e diversificadas da história dos games, que persistiu desde 1996 com seu surgimento no PlayStation 1 pelo diretor Shinji Mikami, se moldando de acordo com novas tendências do mercado de terror e ação (e até se adaptando para mangás, filmes, animações e mais).

Resident Evil - 25th Anniversary
Cartas de comemoração do aniversário de 25 anos de RE, com fundo promocional de RE:Verse. Fonte: Divulgação/Capcom

+LEIA TAMBÉM: RESIDENT EVIL – A MANSÃO SPENCER É UM CENÁRIO GÓTICO PERFEITO

Antes de tudo, a minha história

Primeiro, vamos rapidamente sumarizar minha ótica sobre esses jogos aí: Resident Evil não é só minha franquia favorita na indústria dos games, como esses também foram alguns dos primeiros jogos nos quais tive contato na minha infância.

Lá pra 2005, tive o privilégio de ganhar um Nintendo GameCube, console de preferência para lançamento de alguns como os lendários Resident Evil 4 (2005) e Resident Evil Remake (2002), inicialmente exclusivos do tal console quadradinho.

RE4 se tornaria um jogo extremamente influente à mim porque, apesar do pequeno Yanzinho não entender uma mísera palavra de inglês, sem contar no seu enorme (e natural) medo de ser perseguido por um homem berrando em espanhol com uma serra elétrica e um saco na cabeça, esse ainda seria o primeiro jogo que eu zeraria na vida, o que me conderia como eterno gado fã da Capcom daquele dia em diante.


Foi graças a isso que tive o privilégio de acidentalmente experimentar, mesmo sem entender nada, o momento mais marcante da franquia, que influenciaria muitas das decisões de design e marketing da Capcom a partir daquele ano.

Resident Evil 4 pode não ser o jogo mais amado ou mais bem vendido da Capcom, mas certamente fez seu nome e deixou seu legado na indústria, recebendo aproximadamente 15 portes para diferentes plataformas ao longo dos anos (incluindo para iPhone) e se tornando uma sensação imediata na comunidade gamer, especialmente no Brasil, graças à pirataria do PlayStation 2.

Resident Evil 4 - Luta entre Leon e Krauser
Leon e Krauser lutando em RE4. Fonte: Divulgação / Capcom

+LEIA TAMBÉM: ALISA É PERFEITO PARA VETERANOS E ÓRFÃOS DE SURVIVAL HORROR – ANÁLISE

A “fenda temporal” que dividiu a franquia em dois

Agora, vamos explorar exatamente o que define essa tal “fenda temporal” que define cada metade da franquia. Primeiro, vamos começar com os “clássicos” canônicos (desconsiderando Dead Aim e Survivor):

Os Clássicos

  • Resident Evil 0 (2002)
  • Resident Evil (1996)* e Resident Evil Remake (2002)
  • Resident Evil 2 (1998) e Resident Evil 2 Remake (2019)
  • Resident Evil 3: Nemesis (1999) e nós não falamos daquele outro.
  • Resident Evil Outbreak File #1 e File #2 (2003-2004)
  • Resident Evil CODE: Veronica X (2000-2001)

*Em negrito, o jogo que concebeu a “fase clássica” da franquia.

Assim como já explorei muitos desses pontos em minha análise de RE7, os conceitos básicos da saga eram da exploração de um mundo de horror com armas biológicas, quebra-cabeças, o conceito de backtracking, a gestão de inventários apertados e as caixas de itens e fitas de salvamento escassas, o uso de quebra-cabeças e, acima de tudo, a exploração do medo do desconhecido.

Barry em Resident Evil 1 Remake
O Barry pode atestar: Resident Evil Remake tinha seus momentos de terror. Fonte: Divulgação / Capcom

Também não dá pra esquecer que, enquanto o mundo dos games ainda flertava com o surgimento dos zumbis, Hollywood já estava milhas à frente, em especial nas décadas de 70 a 90 com o fortalecimento do mercado de terror; já o primeiro Resident Evil, originalmente chamado ‘Biohazard’ no Japão, se inspirava mais no filme “Sweet Home“.

Lançado em 1988, o longa japonês dirigido por Kiyoshi Kurosawa contava a história de um grupo de adolescentes que invade uma mansão abandonada em busca de pinturas valiosas, mas acabam ficando presos e são perseguidos por fantasmas deformados e monstros grotescos em decomposição.

O filme eventualmente seria adaptado para um jogo de RPG Metroidvania da Capcom, feito para o Famicom, com vários elementos que inspiraram a franquia: gestão de inventário, recursos limitados, puzzles, além de outros elementos como a morte permanente dos seus aliados de equipe e encontros aleatórios com inimigos (que já não aparecem em RE).

A ideia da franquia foi inicialmente pensada pelo diretor de Sweet Home, Tokuro Fujiwara, que tinha conversado com Shinji Mikami sobre levar o universo dos zumbis um passo mais à frente aos consoles da quinta geração.


O nascimento de uma era: Resident Evil

Começando na era do PlayStation 1, muitos desses primeiros REs sofriam com problemas de otimização por conta das limitações de hardware na época, recorrendo ao uso de câmeras fixas ou semi-fixas e cenários feitos com várias camadas de fotos pré-renderizadas, tendo itens, inimigos e colisões adicionadas em camadas invisíveis por cima das fotos, uma técnica que foi lentamente sendo aperfeiçoada ao longo dos anos.

Os jogos aproveitavam de seus ângulos de visão restritos e claustrofóbicos para combinar com uma jogabilidade com controles de tanque, tornando a experiência tensa e propositalmente desajeitada com as restrições impostas ao jogador, como por exemplo não ter a possibilidade de andar enquanto mira sua arma.

Tudo isso contribuiu na criação de uma gama de jogos espetaculares voltados para o survival horror (que sim, RE1 foi o primeiro da indústria a usar esse termo) com elementos de quebra-cabeças e um foco na vulnerabilidade do jogador, transformando Resident Evil num fenômeno único do mercado.

Rebecca Chambers em Resident Evil 0
As coisas não parecem muito boas pra pequena e corajosa Rebecca. Fonte: Divulgação / Capcom

Desses jogos, destaco o Resident Evil 1 Remake, que ainda considero a maior e melhor experiência original da franquia até hoje, sem contar que é possivelmente o melhor remake de um jogo na história.

Porém, muitos jogadores tiveram problemas com esse estilo narrativo que podia ser maçante, confuso, difícil e de jogabilidade “ultrapassada” e “travadona”, já que a franquia realmente precisava de certo esforço e preparação para o jogador se acostumar.

Afinal de contas, especialmente com a escassez de fitas para salvar o jogo, era provável que boa parte de seu progresso seria perdido várias vezes ao morrer, o que frustrava muitos gamers sem tanta paciência ou destreza com os controles de tanque.

De certa forma, Resident Evil 7 foi uma tentativa de ressuscitar muitos dos princípios da gameplay metódica e estratégica dos primeiros jogos da franquia, com controles e visuais modernizados e uma perspectiva de tiro em primeira pessoa. Você pode ler mais sobre isso na minha análise: RESIDENT EVIL 7 É UM RETORNO PERFEITO AOS CLÁSSICOS DA FRANQUIA.

A Era Moderna

Essa jogabilidade seria aos poucos deixada para trás com a nova geração da franquia, favorecendo os Resident Evils de design que considero da geração mais “moderna” (desconsiderando Umbrella Chronicles e Darkside Chronicles, exclusivos de Wii). Estes seriam:

  • Resident Evil 4 (2005)
  • Resident Evil 5 (2009)
  • Resident Evil: Revelations (2012)
  • Resident Evil 6 (2012)
  • Resident Evil: Revelations 2 (2014)

Iniciada pelo lançamento de Resident Evil 4, essa é a filosofia de design que muitos chamam de Gears of War-esca, com fortíssima presença de elementos de ação e um foco muito maior voltado ao combate intenso que incluía (mas não era limitado a): socar pedras, dar facadas 360º e chutes com piruetas, além de ter um estilo de design de fases e puzzles muito mais simplificado.

Uma curiosidade que nem todos sabem: Resident Evil 4 não foi sempre dirigido por Shinji Mikami, mas originalmente por Hideki Kamiya, sendo que o projeto original de RE4 daria vida ao primeiro Devil May Cry (por isso as similaridades entre Dante e Leon).

O jogo também fazia parte de uma trilogia supostamente exclusiva ao GameCube: Resident Evil Remake, a prequel RE Zero e o lançamento de Resident Evil 4, por ordens de Mikami, até que foram lentamente sendo portados a consoles como o Wii e o PlayStation 2, expandindo seu sucesso (especialmente no Ocidente) como consequência.

Leon sendo atacado em Resident Evil 4
Leon tomando uma só na cara. Fonte: Divulgação / Capcom

A maior parte desses jogos se afastaria ou abandonaria por completo conceitos como a gestão de inventários limitados e o uso de caixas de itens e fitas de salvamento, passando a favorecer a ação com a gestão de outros recursos, como vida, dinheiro e munição.

Em contrapartida, os jogos também focavam na maior agressividade e precisão dos inimigos, que complementavam o estilo de jogos onde jogadores tem um arsenal muito mais potente e completo à sua disposição.

Além disso tudo, também começaram a introduzir o sistema de maletas, que, tenha em mente, mudou muito entre o RE4, 5 e 6; isso sem contar no sistema de mercados, a venda de tesouros obtidos de confrontos opcionais ou escondidos no cenário e, por fim, as customizações de armas.

A loja de RE4
Algumas atualizações da Handgun no Mercador de Resident Evil 4. Fonte: Reprodução / Yan Heiji

Em resumo, essa fase mais edgy da franquia era voltada aos desafios baseados no seu combate, precisão, reflexos, exploração por tesouros e a economia dos mercados, “aguando” muito dos problemas de gestão de inventários e soluções de quebra-cabeças para acomodar a agressividade sem quebrar o fluxo de gameplay oferecido.

Isso não só era resultante de uma nova geração de jogadores acostumados a filmes de ação cada vez mais mirabolantes, como também refletia um elenco de heróis cada vez mais competentes em confrontos num universo cada vez mais submergido em guerras e mortes causadas pelo mercado negro de armas biológicas (B.O.W.s).

Zumbis saltando em RE6
Até nos momentos de “terror”, Resident Evil 6 é literalmente Velozes e Furiosos com zumbis. Fonte: Divulgação / Capcom

E então, é aqui que chegamos em 2021, com o lançamento de Resident Evil Village servindo de tributo principalmente para Resident Evil 4, dentre todas essas novas experiências que se provaram de grande sucesso para a Capcom nos últimos anos. Você pode conferir minha análise dele em: RESIDENT EVIL VILLAGE É UMA HOMENAGEM À TODA A FRANQUIA.

Concluindo: o que é Resident Evil?

Para uma franquia anciã da indústria dos games, que por si só é bem jovem (50 anos é bem menos do que parece para um mercado desse tamanho), Resident Evil já experimentou inúmeras faces para agradar os mais diversos tipos de fãs em sua eternamente expansiva saga multimidiática, que já foi de livros e mangás até adaptações teatrais.

Responder essa pergunta não é a coisa mais simples do mundo, não só por conta das ideias mirabolantes e inexplicáveis que cada jogo apresenta, mas também pela comunidade massiva que a Capcom ganhou ao longo das décadas com seus diversos conteúdos variados, mas talvez esse guia tenha clareado um pouco melhor o porquê dessa fanbase discordar tanto quando se tratam de algumas decisões feita pela empresa.

Resident Evil não é uma coisa só, mas sim um universo gigantesco e cheio de nuances (narrativas e de gameplay), que mesmo sendo “velho” tenta sempre agradar públicos novos com suas produções recentes.

Aparentemente John Fitzherbert estava errado: cachorro velho pode SIM aprender truque novo.