Em 2022, em um dia em que eu estava fazendo absolutamente nada demais, abri o falecido Twitter para receber uma notícia absolutamente estonteante. Bridget foi anunciada para Guilty Gear Strive. Como player de Bridget há uns bons anos em XX, eu fiquei bem animada, pois imaginei que nunca trariam ela de volta. Ainda mais impressionante foi quando a segunda revelação sobre ela emergiu: Bridget é uma mulher trans. Não sei quanto tempo levaria para que eu fizesse-os entender como isso foi importante pra mim.
Esse artigo não é uma argumentação sobre esse aspecto da menina, não pretendo entrar muito na controvérsia ridícula que isso gerou, porque é uma discussão que sequer deveria existir. Mas o que queremos hoje é conversar sobre a transição da Bridget para esse novo jogo, o que também engloba sua transição de gênero. Apesar disso, como meu foco é gameplay, vamos tirar o enredo da frente de uma vez.
Bridget nasceu na Inglaterra, o que já é vergonhoso, ainda mais em uma família rica. A questão é que na cidade em que ela nasceu, irmãos do mesmo sexo eram considerados não só indicativo de azar, mas de tragédia. Iam longe o suficiente para matar os mais novos ou dá-los para adoção (no mínimo). Bridget era muito amada pelos pais então é óbvio que ela foi protegida, sendo criada como uma mulher desde pequena, como uma freira na igreja.
Mas os pais dela sentiam culpa por forçá-la a viver uma vida que ela “não queria” e, ao mesmo tempo, Bridget se sentia revoltada com as crenças infundadas da região. Com muito amor pela sua família, ela saiu em uma viagem pelo mundo como caçadora de recompensas, a fim de conseguir dinheiro o suficiente e muito sucesso como um menino para provar que toda aquela história não tinha pé nem cabeça.
Ela acabou conseguindo, de fato, provar isso, e essa crença foi derrubada. Ela, teoricamente, também havia provado que era um “homem”. Mas esse é o problema. Bridget fez tudo isso por um motivo, e tentar firmar uma noção de gênero que, para ela, não tinha significado. Não é quem ela é, e sim quem ela precisava ser para cumprir seu objetivo.
Apesar de passar todos os jogos em que estava inserida tentando provar sua masculinidade, ela nunca abandonou os vestidos. Claro que roupas não possuem gênero, mas para Bridget, essas roupas claramente indicavam o contrário, e também era assim para os outros. É possível sim que o design dela fosse desse jeito apenas para ter um personagem crossdresser no jogo, e que fosse alguém fofo, de uma maneira diferente do comum. Seja como for — não condizia bem com a constante necessidade de firmar sua masculinidade que ela tinha.
Em Strive, ela continua fazendo isso, mas agora, com seu objetivo cumprido, essas ações não tinham mais significado. Ela pôde perceber que, na verdade, não é assim que ela se vê. Alguns idiotas imbecis que não vou citar por nome (embora poderia) dizem que tanto o que os pais dela fizeram como Goldlewis e Ky foi “grooming” — usando da inocência dela para forçá-la a algo. Isso não tem sentido algum, pois os pais dela já se sentiam culpados por ela ter que viver algo que não podia escolher, e não seriam contra ela querer ser um menino daqui pra frente. Goldlewis e Ky apenas apontaram que ela não parecia confortável atualmente, até aceitando quando ela fala o contrário, pois é escolha dela.
Mas, claro, depois de pensar por um tempo, ela percebe que não fazia sentido continuar mentindo para si mesma. Em um momento ela até pergunta “Mas e se eu estiver errada?”, com medo da mudança fazê-la perder o que já tem agora. E nesse momento, Goldlewis diz que ela é jovem e tem muito tempo para errar ainda. E essa é a mais pura verdade.
Esse é um fator que muitos transfóbicos esquecem sobre pessoas trans e sobre crianças e adolescentes em geral: não é uma mudança permanente. Caso você descubra algo diferente no futuro, sempre há tempo de mudar. Você precisa usar esse tempo para experimentar e se descobrir, porque é o tempo que você tem. Ao invés de viver uma mentira, você precisa se arriscar para encontrar sua verdade. É o que Bridget fez, e ela está bem feliz por isso.
Daisuke disse que a intenção por trás dela era fazê-la uma mulher trans desde o início, mas que o mundo não era ideal para isso. Ele pode estar mentindo ou falando a verdade, não importa pra mim, mas a maneira como foi feita ainda faz todo sentido. Apesar de que, se realmente queriam que ela fosse trans desde o início, deviam ter feito ainda na época em que não era “aceito”. Porque ainda não é, e ela teria ajudado bastante. No entanto, o resultado atual deixa… muito melhor, na verdade.
A progressão e desenvolvimento dela é bastante similar a muitas (e eu digo muitas) pessoas trans. É comum que, primeiramente, o questionamento nos leve a uma mudança em comportamento e vestimentas, por vezes indo longe o suficiente para ser crossdressing (como foi comigo). E você fica nisso por um tempo, dizendo que é só isso, até não ser mais. Quanto mais você se conhece, mais essa noção fica esquisita. Os pronomes precisam mudar, o seu nick na internet tem que mudar, você precisa usar outras roupas, tudo para tentar acalmar a dor no seu peito enquanto você não quer aceitar a mudança. Até que em um momento ela precisa sair do seu coração. Meu processo de descobrimento também foi lento assim.
Talvez estejam certos sobre ser um retcon, mas até que ponto você pode considerar algo um retcon, e quando se torna meramente desenvolvimento de personagem? Ou mais, a evolução dos sentimentos do próprio autor? Guilty Gear é escrito por seres humanos, e os tempos mudam junto com os humanos. Nenhuma informação do passado da Bridget foi alterado, a menina começou a mudar com o tempo, crescendo, amadurecendo. Ela não é mais uma criança e já chegou na idade adulta. É comum que esse tipo de coisa aconteça.
Na mesma idade que Bridget era apenas “crossdresser” eu também era. E, bizarramente, eu me descobri mulher antes mesmo dela, deixando ainda mais lindo descobrir que trilhamos o mesmo caminho. Ela nunca foi forçada a ser mulher, e o fato de ela ter que agir e mentir que é uma quando pequena, apesar de não ser uma boa maneira de se descobrir, mostrou para ela quem ela gosta de ser. Toda sua relutância quanto a esse fato vem de um fator ideológico, em que ela não concorda que devia ter sido forçada a isso pelo lugar onde nasceu, e em ver seus pais sentirem culpa por algo que fizeram para protegê-la. Se fosse para ela se descobrir uma mulher, seria mais saudável se fosse por vontade própria. Ainda que ela goste dos vestidos e acessórios fofos, o certo seria ter tomado as decisões por si mesma, e isso é o que a revolta.
Ao conseguir finalmente provar seu ponto, ela tem todo direito de seguir seu caminho como quiser. A personagem se desenvolveu naturalmente para chegar até ali, e ainda que Daisuke estivesse inventando a história do conceito original ser uma mulher trans, na obra dele ele tem o direito de desenvolver os personagens com as novas ideias criativas que ele tiver. E ele fez isso, de uma maneira única e que faça sentido. E ele não liga se isso vai contra o status quo gerado pela existência original da Bridget, que foi tão influente na cultura japonesa, porque ele é ROCKEIRO. É completamente aliado dos seus valores rockeiros ir contra a maré, e se o Japão ainda não aceita pessoas trans como são, faz todo sentido que ele seja contra isso. Isso é ATITUDE ROCK!!!
E agora que tiramos o grande elefante da sala, vamos falar sobre as coisas que só alguns nerds se importam, e a única coisa que não mudou para melhor quando Bridget veio pra Strive. A última aparição da menina (em um jogo de luta) foi Guilty Gear XX Accent Core Plus R. Encurtaremos para GGXX! E lá, assim como desde sua concepção, Bridget era um personagem de setplay, não muito zoner mas com certeza não um personagem para se usar em close range. A sua mecânica principal era o Ioiô que, além de sua variedade de possíveis posições, tinha diversos golpes diferentes com posicionamento. Naturalmente, Bridget era um personagem difícil, mas muito profundo e divertido, que após aprender, é comum se apaixonar (como a maior parte dos personagens de XX).
Em Strive, ela é bem mais direta e simples, considerada pela comunidade um dos personagens mais acessíveis, pelos motivos errados. Ela perdeu muita coisa que a fazia única e profunda, e recebeu novos golpes que não acentuam alguma diferença estimável, fazendo-a ser mais parecida com qualquer outro personagem de jogo de luta. Apesar disso, ela ainda é divertida, porque Guilty Gear é um jogo legal e até uma pedra poderia ser um bom personagem, mas em comparação com o patamar tão elevado que suas aparições originais estabeleceram, a Bridget de Strive deixa muito a desejar.
Para melhor entender a mudança, precisamos falar sobre o que ela perdeu, o que ela ganhou e o que alterou significativamente. Não vamos falar muito sobre framedata e hitboxes, pois Bridget mudou de uma maneira estrutural. Alguns golpes rebalanceados não alterariam seu estilo de jogo completamente assim!
Começando pelo mais simples e menos importante, Bridget perdeu seu flipkick em 6K, o que não ligo muito. É um dos golpes menos utilizados dela nos originais, o que não diz que é ruim, mas que sua perda não é tão grande. Bridget perdeu ambos j.5S e j.2S, mas também são perdas pequenas pois seu novo j.5S é incrível, e ela tem maneiras de cobrir as funcionalidades desses dois golpes.
Uma grande mudança, no entanto, foi seu 2S. Antes era um anti-air gigantesco à la Axl Low, que além de muito divertido de usar para punir, possuía um irmão: 6S, que também era um anti-air, para outro ângulo e de outra forma. Ambos se complementavam perfeitamente, e a ausência deles, apesar de significativa, expressa mais sobre o novo design de Strive que é mais simplificado. Os dois golpes eram muito balanceados em XX, um jogo caótico e maluquinho em que todo mundo tinha as ferramentas pra lidar com situações bizarras. Com a arena menor e movimentação mais lenta de Strive, Bridget acabaria com o jogo usando esses dois moves.
HS em GGXX era um botão inteiramente ligado ao Ioiô. No chão, você podia pressionar o botão para deixar o Ioiô parado em algum lugar, com seis direções diferentes se não me engano. Quatro bastante diretas, Bridget apenas lançava na direção pressionada. Mas para trás fazia a arma deslizar pelo chão para frente, e diagonal superior para trás o levava para as costas do oponente pelo ar. O Ioiô só retorna quando chamado de volta, pressionando o botão de novo. No ar, haviam 9 posições possíveis, nas 8 direções e neutro.
Todo esse posicionamento dava estratégias muito mais únicas e criativas para a menina, que ainda possuía oito follow-ups para o Ioiô. Ela perdeu quase todos! Todos os golpes do Roger, com meter ou sem. Alguns grudavam no oponente, outros o perseguiam, outros stunnavam, e você podia trazer o Ioiô de volta quando quisesse e ainda dar delay no recall. Tantas possibilidades diferentes! Um personagem difícil, mas divertido e recompensador.
Em Strive, Bridget lança o Ioiô com 236 ou 214 + S ou HS. Com S, ele sempre irá para frente, seja no chão ou ar. Com HS, na diagonal, para cima no chão e baixo no ar. Com uma meia lua para frente a arma causa dano no lançamento (o que é novo), sendo apenas um projétil. A meia lua para trás o fazia causar dano no retorno automático que acontece beeem rápido. O Ioiô foi de praticamente infinito para durar dois segundos na tela, no máximo.
E, claro, são quatro posições possíveis, contando com ambos chão e ar. É menos que um terço do original! E ficando menos tempo na tela, com quase nenhum follow-up. Bridget ficou mais fácil, deixando-a bem menos única.
Essa foi sua maior perda, é claro. Um super dela também sumiu, mas não ligo muito pra isso. Não era um dos seus melhores, apesar de ser legal, e é claro que o Instant Kill não voltou (pois não existem em Strive). O que realmente importa é o Ioiô!
Mas se ela perdeu o Ioiô no botão HS, o que ela recebeu em troca? Vamos falar sobre as adições à personagem! Nenhuma delas cobre a falta de… bem, tudo que fazia ela ser quem é, mas seria injusto dizer que ela veio para Strive perdendo e só.
Um novo 6K foi adicionado, bem mais útil que o original para mim. 5S possui um follow-up que causa Knockdown (apesar de deixar o oponente bem afastado), e seu novo 2S é um dos seus bons golpes para combos por causar dois hits e ter range ridículo. Seu butt attack (3P) ficou muito melhor, agora se equiparando a um Special. Ao invés de uma simples bundada, Bridget salta no ar com uma espécie de Bandit Revolver cancelável em Specials! Também possui frame advantage ótima e é até overhead por alguns milisegundos. Gosto de cancelar em Ioiô ou Rock The Baby caso seja bloqueado, e é claro que o move da bunda começa combos em counter hit.
HS agora é um botão, com normals, e ótimos normals aliás. Todos são de longo alcance, e usados em combos porque o gatling desse jogo permite pouquíssimas rotas de chains e S>HS é uma delas. Bons punishes, ferramentas de zoning, e 2HS é um anti-air maravilhoso que, apesar da sua lentidão, inicia combos bem fortes em CH.
Nos seus Specials, Bridget tem um novo divekick com Roger que é bem útil em Mix-Ups e um Command Throw que eu amo de paixão. Essa foi a mudança mais positiva no moveset dela, pois é um throw que posso usar no ar para acertar no chão. Rock The Baby é muito divertido! Mas assim como o novo HS, não justifica perder o Ioiô.
Sobre as alterações em golpes ainda existentes, temos algumas interessantes fora o butt. Pra começar, Starship agora é um DP convencional, subindo para o céu. Chato. Também não pode mais ser usado no ar. Seu Roll, agora menos móvel por conta do Ioiô, causa dano. Eu gosto disso! No contexto da nova Bridget, não é muito legal, mas em XX isso teria sido insano!
j.5S é como uma fusão dos dois aerials de S que ela tinha em XX, com bom range e ângulo voltado para air-to-ground. Também começa combos! E, sei que não cabe muito na categoria, mas Kickstart My Heart está aqui e continua excelente. Mais lento, mas o jogo todo é mais lento, então era de se esperar.
Bem, agora vocês conhecem a nova Bridget, e podem ter achado bem interessante. Na verdade, eu ainda jogo com ela no Strive, porque gosto da personagem. Mas qualquer um que passar alguns minutos com a original vai perceber o significado de tudo isso. Bridget do XX dava possibilidades de expressão infinitas para os jogadores, deixando que você brincasse da sua própria maneira com seus próprios setups de Ioiô. O fato de ela ter um botão a menos não fazia com que ela parecesse mais fraca, ou que tivesse menos opções que os outros. Às vezes até parecia que ela tinha mais!
Bridget do Strive é mais padronizada. Um DP comum, projéteis comuns com pouco posicionamento, movimentação simplificada. Suas maiores proezas são seus combos em longo alcance que, apesar de não a tornar uma zoner, são interessantes de assistir, por alguns minutos. Ela ficou mais acessível, de fato, mas perdeu tudo que a fazia completamente insubstituível no cast. Não é um problema isolado, na verdade, mas isso é um assunto para outro momento…
Apesar disso, eu me divirto com ela. Se você é queer de alguma forma, deve saber como um personagem pode fazer você se descobrir. Bridget me apresentou quando bem pequena a uma leve ideia de transgeneridade com crossdressing, algo que depois de um tempo eu mesma comecei. Passei bons anos da minha vida me denominando “femboy”, até eventualmente perceber que esse era apenas meu longo caminho para descobrir que sou simplesmente uma mulher.
A Bridget atual é quem eu queria ter conhecido quando pequena para entender melhor do assunto desde cedo, mas o caminho que a história tomou também foi muito lindo. Ela é para mim o que o Max Steel era para os meninos da minha sala no fundamental, o que o Ben 10 representava para as crianças e quem a Barbie era para muitas meninas. Ela é como uma heroína, um ícone. Não só uma mulher trans — é uma mulher trans que se descobriu na tela, lentamente. Sua identidade mudou, a transição dela foi um fator determinante na sua história. Não foi uma menina que conhecemos como trans, vimos ela se descobrir, e ao mesmo tempo que diversas de nós nos descobrimos.
Por isso, como fã dela, posso até ligar para terem destruído seu moveset original, mas vejo sua vinda para Strive como positiva. Ela me fez ter orgulho de quem eu sou por me representar em uma franquia que eu sempre amei muito. Uma mulher que, mesmo sendo uma personagem fictícia, sofre transfobia toda vez que é mencionada das maneiras mais bizarras. Mesmo odiando perder o nível exemplar de diversão que ela me passava (e ainda passa) em GGXX, eu joguei Strive com um sorriso no rosto pois estava olhando para ela. Um retrato de quem eu sou, ou quem eu quero ser. Eu amo muito ela e sou muito grata por sua criação, e espero que o futuro de Guilty Gear não hesite em a incluir, ainda que sem seus quinze posicionamentos de Ioiô com quase dez followups únicos para neutro, mixup, setups, punishes, combos e movimentação avançada… bem, boa noite!
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