Lake é um jogo fofo, mas repleto de grandes problemas – Análise

Lake jogo análise

Lake é um ambicioso jogo de exploração focado em relaxamento e narrativa desenvolvido pela Gamious. Ver novos jogos de estúdios pequenos trazendo experiências mais lentas e sem combate está se tornando algo cada vez mais comum, e isso traz diversos novos desafios para os desenvolvedores.

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Pois é, fazer um jogo onde a gameplay principal envolve um trabalho comum é mais difícil do que parece em primeiro olhar. É muito mais fácil prender a atenção de alguém com ação constante que criar um apelo único para um jogo onde você trabalha como uma entregadora de correio.

E este é o problema que Lake busca enfrentar. Nele, você joga como Meredith, uma mulher nos seus 40 anos que irá passar suas próximas semanas de férias do trabalho de programadora em sua quieta cidade natal de Providence Oaks. Ela está ficando na casa dos pais, que ainda moram lá e foram para Flórida, também de férias.

Mesmo estando em um lugar relaxante, a natureza workaholic de Meredith a faz arranjar um emprego temporário como entregadora de correio na cidade, e é aí que o jogo realmente começa. Durante as duas semanas de viagem, você deve entregar todas as cartas e pacotes ao redor da cidade (que é cercada por um enorme lago) e conversar com alguns dos locais que estão dispostos a bater papo.

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Desde o início, o loop de gameplay de Lake fica bem claro. Você passa o dia lentamente entregando correios com seu caminhãozinho até relaxar no fim do dia. Essa é a parte mais relaxante de Lake, e encaixa perfeitamente na intenção de fazer o jogador ter uma experiência de calmaria por parte dos desenvolvedores.

Você não tem um tempo específico para completar as entregas, e o dia só acaba assim que você terminar todas elas. Você tem um diário com suas tarefas extras (as missões secundárias), mas elas nunca tem conflitos entre si ou atrapalham outros objetivos, então você pode completar todas sem preocupação.

Isso não fica completamente claro de início, e às vezes eu recusei um ou outro pedido de alguém da cidade com medo de criar um conflito de horário com outra atividade, o que acabou tornando minha experiência um pouco mais estressante do que deveria ser. Esse é um problema recorrente de Lake, mas eu toco mais no assunto depois.

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A navegação por volta de Providence Oaks é muito agradável, e isso se dá por diversos motivos. Tanto a trilha sonora ambiente quanto a estação de rádio country-pop trabalham para criar a sensação de uma cidade pequena confortável, e os poucos carros e pessoas que você vê na rua passam a mesma sensação.

Mesmo assim, é uma pena que não existem muitos diálogos opcionais em Lake. O único NPC que pode ser abordado para uma conversa é secreto e até te dá uma conquista, e ver mais personagens pequenos tendo conversas com Meredith ajudaria bastante para criar uma atmosfera mais vívida à cidade.

Além disso, a presença do lago tanto na navegação quanto na narrativa é pequena demais, considerando o nome do jogo, “Lake”. A única vez que você interage com ele é em uma cena opcional bem curta lá no final da história, então ele acabou ficando como uma oportunidade perdida que poderia ter sido utilizada como simbolismo para fortalecer os temas de familiaridade e conforto.

Ainda assim, a presença de um enorme lago no coração do mapa de Providence Oaks ajuda a criar uma ilusão de que a cidade é muito maior do que parece, quando na realidade ela tem basicamente três bairros e algumas casas pequenas no meio do nada.

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A “cena opcional curta lá no final do jogo”

Isso não é um ponto negativo, pois Lake é um indie bem ambicioso, e algumas limitações tiveram que ser feitas. Ele busca simular toda a vida de uma cidade por duas semanas inteiras, com dias ensolarados, chuvosos, noites, rotinas e todas as outras necessidades que uma simulação pede para ser bem sucedida. Isso deve ter criado boa parte dos desafios técnicos de desenvolvimento, e a ilusão de um lugar com vida se mantém relativamente intacta durante a duração do jogo.

Por outro lado, eu acredito que Lake ainda dura uns dois dias mais do que deveria. Nos úlitmos dois dias de entrega, quase nada relacionado a história principal acontece, e esses são os dias com mais pacotes e cartas para serem entregues, então nessa altura parece que você está só passando pela monotonia antes das cenas finais, pois o verdadeiro foco de Lake está em sua narrativa.

A história principal de Lake é bem previsível, mas como em toda história que lida com o cotidiano, seus momentos mais impactantes estão nas conversas individuais entre personagens e no quanto a personalidade dos mesmos brilha.

Meredith é uma protagonista muito incomum para um jogo, já que ela é uma mulher de 40 anos com uma vida comum. Sério, essa é uma das primeiras vezes que eu vejo uma protagonista feminina mais velha em um jogo.

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E os escritores lidam muito bem em encaixar a narrativa em uma lente madura, onde boa parte dos personagens agem como adultos reais. É até um pouco chocante ver o quão realistas são as reações de personagens como Kay (a melhor amiga de infância da protagonista) quando Meredith conversa com ela sobre sua decisão passada de ir embora para a cidade grande, algo que fez as duas se separarem num momento difícil.

Kay lida com isso com maturidade e entende os motivos que fizeram Meredith ir embora, e mesmo isso sendo algo comum no dia a dia da vida real, é raro ver um jogo tratando conversas dessa maneira. Isso marca um passo positivo por parte da indústria independente na construção de personagens de maneira mais natural em jogos.

Mas mesmo com diálogos únicos, Lake ainda não escapa de arquétipos genéricos. Vários dos personagens podem ter suas ações futuras previstas pelo jogador muito facilmente só de ver eles agindo uma vez, algo que deixa os diálogos um pouco estáticos.

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Existem algumas exceções disso, pois personagens como Angie (uma das opções românticas do jogo) conseguem passar por arcos satisfatórios, e eu gostaria de ter visto mais disso em outras pessoas da cidade.

O atendente do motel, por exemplo. Ele passa o jogo inteiro reclamando e ignorando Meredith, e isso nunca é resolvido ou evolui. Todas as vezes que você passa lá para entregar algo, ele reage da mesma maneira, e é impossível tomar alguma escolha que mude isso.

E as escolhas incorporam uma das mecânicas principais de Lake, que é lidada de maneira questionável.

Isso provavelmente já ficou claro, mas no fim das duas semanas de Meredith em Providence Oaks, ela vai ter a opção de se mudar para lá, e por consequência abandonar sua vida na cidade. Então, durante sua jornada no jogo, Lake te dá 3 tipos de opção quando alguém a pergunta o que ela está achando da cidade:

  • Dizer que Providence Oaks é um lugar surpreendentemente bom de se viver
  • Dizer que Providence Oaks está sendo uma boa mudança de cenário, mas que você não se imagina vivendo lá
  • Dizer que Providence Oaks está sendo mais tedioso do que você imaginava
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Essas três opções de diálogo são repetidas diversas vezes e de diversas maneiras diferentes em Lake. Quase todo dia. Como jogador, você provavelmente já vai ter decidido o que quer para o destino de Meredith no fim da primeira das duas semanas, mas o jogo ainda faz perguntas assim para você até o último dia.

E nenhuma dessas escolhas realmente importa. Sua decisão final acontece no último dia de jogo, e a única coisa que elas mudam é a reação dos personagens baseada na opinião que eles tem sobre isso. Por exemplo, os pais de Meredith (que ligam pra ela quase toda noite) querem que ela fique, Angie quer que ela vá embora, e por ai vai.

Então as escolhas eliciam um nível de tensão inicial desnecessário ao jogador, já que a escolha real só vem no fim do jogo. Mas esse não é o único erro narrativo de Lake.

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Sem me envolver em spoilers, existe uma rota de escolhas em Lake (que é a primeira que eu fiz, inclusive) que é extremamente fácil de quebrar. Basicamente, se você quiser esse final específico, o fato de você conseguir ele ou não depende de uma escolha que não é telegrafada corretamente para o jogador e que aparece dias antes do final.

Eu só vou dizer algo para tentar evitar futuros jogadores frustrados: Fique com o trailer (RV) que te é oferecido.

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FOTO: DIVULGAÇÃO / Gamious

Uma escolha aleatória decidir se um final vai ser possível ou não se torna algo ainda mais bizarro quando você considera que todos os outros finais de Lake ficam disponíveis independente de suas escolhas no meio dele, como eu disse anteriormente.

Lake vai tão longe na filosofia de deixar possibilidades abertas até o final que os personagens de Providence Oaks começaram a falar comigo como se eu tivesse feito outra rota da qual eu ignorei completamente, deixando uma opção romântica que eu rejeitei desde o início do jogo aberta até o final, mesmo sem eu ter feito as missões secundárias relacionadas à ela.

Essa é a primeira vez que eu vi algo assim em um jogo focado em narrativa, e isso até me assustou de início, pois eu pensei que era um bug ou algo do tipo, quando na realidade era só uma parte desconsiderada pelos desenvolvedores.

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FOTO: DIVULGAÇÃO / Gamious

Mesmo com todos esses problemas narrativos (e eles não são leves), eu ainda aprecio a história que Lake conta, e a maneira que ela é contada.

Eu não me arrependo de nenhum segundo que passei dirigindo pela cidade naquele caminhãozinho lento, e nem de ter ido atrás de pegar todas as conquistas (e por consequência fazer todos os finais), pois Lake ainda consegue atingir seu objetivo de trazer uma experiência relaxante, mesmo com tantos problemas.

A navegação pela cidade, o quão familiar você se torna com ela ao passar dias entregando pacotes (eu até acabei decorando o nome de algumas ruas individuais), os personagens agradáveis e as pequenas experiências são o que fizeram de Lake um jogo ao menos interessante, mesmo que ele não seja um dos melhores em seu gênero.

Uma cópia gratuita de Lake para a plataforma PC foi concedida pela
Whitethorn Games para análise no Recanto do Dragão.