Atlanta é um espelho

Atlanta é um espelho

Atlanta é uma cidade americana em Geórgia. Também é o nome de uma das melhores séries que eu assisti desde que aprendi a respirar. Criada por Donald Glover em 2016, também conhecido por ser Troy de Community, além de seu trabalho menor e menos popular como o rapper Childish Gambino que você provavelmente nunca ouviu falar, né?

Brincadeiras à parte, Atlanta é uma série sobre, primeiramente, Rap e racismo na América. Mas, honestamente, é sobre o que o Glover quiser. Eu fiquei obcecada por essa série esse ano, mesmo não assistindo séries usualmente. É uma produção muito única em diversos aspectos, com abordagens criativas de diversos assuntos e a sua icônica noção dos limites da sua própria narrativa, e como ignorá-los. Atlanta é por essência uma série muito experimental e é conhecida por isso.

Atlanta

Atlanta usa de muitas ideias bizarras pra mostrar a cultura negra, as lutas sistêmicas na América e no mundo, o estado da cena atual do Rap, entre diversas outras coisas que você não vai encontrar do mesmo jeito em outro lugar. Ou talvez vá? Cada episódio é escrito e dirigido de uma maneira muito interessante — naturalmente, é episódico embora siga uma narrativa que se expande, e cada capítulo da história foca em uma ideia insana que algum dos criadores teve e acabam executando de maneiras ainda mais malucas.

Ao mesmo tempo, a série inteira é lotada de críticas sociais mas… de forma diferente do esperado. Atlanta não faz uma afirmação — começa uma conversa. Os criadores têm opiniões claras sobre o que pensam, mas a série faz muito mais do que apenas impor o próprio senso de moralidade, tentando iniciar uma discussão que vai ser desenvolvida por quem a assiste. Para isso, Atlanta mostra diversos lados ao mesmo tempo, em uma narrativa que enquanto desenvolve e experimenta com seus personagens e situações criativas também deixa claro onde tudo isso quer chegar. Os episódios tem um subtexto interessante, que fica muito pouco abaixo da superfície a ponto de ser fácil de encontrar, mas não alterando o rumo da trama do episódio em si. Na verdade, é uma maneira interessante de mostrar os problemas do mundo real em episódios que aparentam ser sobre outra coisa.

No episódio 9 da 3ª temporada, o protagonista se torna um jovem branco prestes a se formar no ensino médio. Ele é filho de um pai negro, mas uma mãe branca. No episódio, a escola é comprada por um homem negro, rico, que conseguiu suas riquezas com muito esforço vendendo produtos de cabelo. Ao comprar a escola, ele também diz que vai pagar a faculdade de todos os alunos… que são negros. Uma coisa interessante do episódio é que nós acompanhamos o jovem branco, e a trama nos leva a se importar com ele ao invés de sermos levados à olhar ao redor da sala até achar o gigante elefante. Sentimos pena dele, e talvez alguém até se pergunte como o mundo pode ser tão injusto… até o final do episódio, quando as intenções dos criadores fica clara. Com poucos minutos de pensamento chegamos à diversas conclusões, e outras perguntas. No final do episódio o personagem principal invade a escola à noite para queimá-la com um lança- chamas, mas acaba encontrando outro colega que veio fazer o mesmo — um jovem negro.

Os dois foram negados o mesmo direito à uma faculdade que eles não tem condição financeira pra pagar, mas por quê? Não importa, porque os dois decidem lutar até a morte ali e, quando o jovem branco estava para perder, um policial aparece para atirar no jovem negro mas, para o branco, apenas grita “Parado”. Na cena seguinte, o jovem que tomou um tiro recebe o pagamento pela faculdade e todas as despesas do hospital, porque segundo o dono da escola, tomar um tiro de um policial é a situação mais negra que alguém pode passar. O jovem branco nem sequer recebe uma palavra de repreensão, nada acontece.

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A situação apresentada no episódio tem diversas vertentes e inicia uma discussão. Você poderia facilmente apontar algo usando esse episódio, e receber um contra-argumento de alguém usando o mesmo episódio. Esse tipo de narrativa inteligente perdura pelos 41 episódios da série, que de fato foi finalizada em 2022.

Nem sempre o assunto é apenas racismo — por vezes é misoginia, depressão, ausência parental, violência policial e também criminal (inevitavelmente fala sobre racismo), drogas, homossexualismo, sempre de uma maneira, honestamente, divertida pra caralho. Atlanta é uma série engraçada, extremamente envolvente e tem personagens escritos da maneira mais realista que eu conheci em muito tempo. Já é muito difícil fazer personagens que parecem pessoas reais, mas Atlanta vai um passo mais fundo.

Diversas obras tem personagens realistas e humanos, mas o costume é que para que eles sejam não só fáceis de se relacionar mas também considerados bons personagens, que eles sejam desenvolvidos. E, é claro, como ser humanos sempre estão mudando, se desenvolver é uma necessidade para fazer uma escrita vitalmente real. E é claro que os personagens de Atlanta se desenvolvem mas… não em tudo. Na primeira temporada, em um episódio que eu não gosto muito, Alfred mostra ser transfóbico. Como uma mulher trans eu poderia falar sobre esse episódio em detalhes e destrinchar a transfobia nele, mas não vou. O fato é que os escritores também mudaram desde a primeira temporada, mas nunca é mostrado o personagem do Alfred evoluindo quanto a isso. Na última temporada, Earn comete um ato de crueldade extremamente perturbador com uma mulher e destrói a vida dela como vingança por algo que aconteceu há meses. Nunca vemos o resultado de desenvolvimento após isso, talvez ele continue sendo um pouco sadista e maldoso por dentro. Mesmo Darius, uma pessoa tão boa, em certo episódio ignora uma mulher que, por sua causa, está sendo perseguida. Ele facilmente poderia parar aquilo se quisesse, mas não o faz. Aquela mulher é vista no final do episódio chorando sentada na rua, e nunca mais aparece na série.

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Os personagens cometem erros o tempo todo, muitos são consertados e eventualmente crescem, mas o ser humano não é perfeito. E uma maneira mais hábil de mostrar a imperfeição do ser humano é mostrar ele errando e deixar por isso. É difícil defender diversas ações dos personagens durante a série, grandes ou pequenas, mas isso também faz parte de quem eles são. Porque nada é preto e branco, e isso também é parte da mensagem que a série quer passar. Você pode odiar um personagem por algo que ele fez, ou amá-lo pelo mesmo motivo (mesmo discordando). Porque a verdade é que nós também somos assim, e existem partes na nossa vida que são podres e talvez mudem, mas talvez não.

Além da absurda escrita da série quanto se diz à sua profundidade, não posso deixar de falar como Atlanta é só… bom. É uma série que eu apresentaria a qualquer um, não só por sua mensagem mas por ser tão divertido e imprevisível. Atlanta não tem medo de quebrar seu próprio universo a todo momento. Diversos episódios da série nem sequer tem os personagens principais, como um dos seus melhores episódios que aborda um caso de assassinato real contado em detalhes de uma maneira muito perturbadora. Ou um dos últimos episódios da série, que é um documentário falso sobre o filme mais negro de todos os tempos: Pateta, O Filme. Sim.

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Mas, mesmo com os personagens principais, temos diversos episódios experimentando com qualquer ideia absurda que os escritores tenham. O episódio “Teddy Perkins” segue apenas Darius em uma jornada assustadora na mansão de um homem bizarro que é muito provavelmente um psicopata, interpretado por Donald Glover fazendo whiteface. “New Jazz” conta a história de uma bad trip que Alfred teve em Amsterdã, acompanhando pela cidade por uma mulher trans com o nome da sua falecida mãe e fazendo-o abrir os olhos para quem realmente se importa com ele. Em “Cancer Attack”, Alfred tem seu celular roubado e passa a noite interrogando um jovem extremamente suspeito para encontrar seu aparelho, porque naquele celular tem uma coisa que importa pro Al mais que tudo nesse ponto.

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Por vezes, não é nem o episódio em si que é uma ideia bizarra. Atlanta costuma pender para o sobrenatural do nada sem qualquer explicação — a existência de um carro invisível, por exemplo, que aparece atropelando todo mundo na saída da balada e nunca é explicado. Ou Florida Man ser alguém que existe, ou o animal chamado “Snipe” que Van inventou para sua filha realmente existir. Justin Bieber na série é negro por motivo nenhum, e realmente não tem um motivo sólido pra essa decisão na escrita. O jovem interrogado por Alfred e os outros em Cancer Attack sabe de coisas que apenas Al saberia e também tem o número de celular dele, mesmo que ele não tenha o celular do Al em mãos — ele só tem essas informações porque são dele também, como se Alfred tivesse um clone.

O último episódio da série é todo sobre Darius não saber se está ou não em um tanque de Privação Sensorial enquanto os outros resistem a necessidade de ir comer no Popeye’s ao invés de um restaurante de sushi de outros negros. O último episódio da série. E há pouco tempo tivemos um documentário falso sobre Pateta O Filme. Atlanta realmente não liga pra porra nenhuma.

Por fim eu queria dizer que as músicas licenciadas são incríveis nessa série… e pedir desculpas pelo hiato absurdo nos textos. Coisas grandes estão vindo, mas esse texto mesmo tá sendo postado no dia que eu escrevi. Por quê? Porque é fevereiro, e eu deixei pra escrever no último dia possível. Eu realmente não tô bem, mas as coisas podem melhorar. Obrigada por terem lido, boa noite.